Tendo como fio condutor a meditação sobre o Saci, hoje tão recriado e propagado em diferentes suportes, me perguntava se seria possível explicar suas mutações, vistas dialeticamente, na relação mudanças X resistências

 

 

por José Carlos Sebe Bom Meihy

jcarlosbm@hotmail.com

 

A proposta ia se firmando na medida em que partia de um pressuposto que reconhecia, no passado, um Saci amedrontador – ente das florestas temíveis e inconquistáveis, dono de assovio tétrico e ensurdecedor -, até a formulação de um simpático personagem – menino maroto, mulato gracioso, perfeitamente integrado no gosto nacional. Dizendo de outra forma, me inquiria sobre a coerência entre tais variações e o “jeito maleável” que, de regra, nos remete à interpretação da cultura brasileira como: incruenta, sem violência ou preconceito, esvaziada de agressividades e, sobretudo, destituída de percepções de luta de classes. Haveria relação entre as transformações do Saci e o “jeitinho brasileiro”?

Frente a esse questionamento, aprofundava a questão indagando sobre sua aproximação e o processo de mestiçagem, e, então queria saber de onde teria vindo a lenda do Saci? Das três alternativas mais usuais – indígena, africana ou europeia – tive que prezar todas. Pensei de saída que, ante a impossibilidade de precisão, me era obrigatório apoiar, comodamente, no conceito de “metamorfose”. Pensando na gravidade da leitura crítica sobre tal posicionamento, restou apelar para o cenário antropofágico que caracteriza a moderna percepção da cultura brasileira como um todo. Sim, é inegável que a imprecisão da origem de figuras como o Saci leva à formulação de um modelo hegemônico que se materializa na conceituação do que é nacional. Nesse contexto, reina a estratégia das negociações, ou da incorporação e da reversão de tudo que vem “de fora” em nacional, brasileiro. Em certa medida, isto explicaria a preocupação de Lobato que foi pioneiro na busca de definição do sentido do Saci em nossa cultura. Mas, como nem só do “Inquérito sobre o Saci” se nutre a argumentação, me vi na contingência de complementos informativos.

A fim de dar contorno analítico para a construção do Saci como personagem nacional, parti do pressuposto de que hoje ele é figura palatável, aceito, principalmente fabricado para crianças, ainda que a oficialidade se valha dele como referência “exaltativa”, atestado de certa brasileiridade nacionalista e malandra. Fala-se, aliás, de uma dupla infantilização: do Saci adulto, negro raivoso, senhor das matas, tornado menino arteiro; e dele como personagem destinado ao entretenimento. As duas faces dessa moeda negociam um longo processo de apresamento e construção do personagem, estabelecido segundo a imagem e semelhança da cultura que atesta o perfil brasileiro negociador.

 

Abre o artigo, ilustração de José Wash Rodrigues para a capa do livro adulto 'O saci-Pererê: Resultado de um Inquérito' por Monteiro Lobato. Acima, ilustração em nanquim feita por Monteiro Lobato para o seu livro infantil 'O Saci'

Abre o artigo, ilustração de José Wash Rodrigues para a capa do livro adulto ‘O saci-Pererê: Resultado de um Inquérito’ por Monteiro Lobato. Acima, ilustração em nanquim feita por Monteiro Lobato para o seu livro infantil ‘O Saci’

 

Outro elemento considerável nesta análise é o fato desse personagem caminhar progressivamente como tema pedagógico, lúdico, e, nesse processo, validado como estratégia ideológica, se confirmaria o princípio da antropofagia, pois a imagem que hoje temos do Saci é de uma figura transformada. Sem dúvida, o padrão dado pela Rede Globo de Televisão nas várias versões do programa “Sítio do pica pau amarelo” mostra um garoto negrinho, de uma só perna, capuz e calça vermelhos, mas pouco assustador. O Saci de nossos dias, não é mais o maldoso ente que atormentava a todos, mas um cativante tipo que faz suas travessuras engraçadas. De maneira sorrateira, em favor do “politicamente correto”, foram aliviados o olhar ameaçador e retirado o “condenável” pito/cachimbo, não mais solta fumaça pelos olhos.

Talvez, os mais convincentes argumentos demonstrativos do processo de “adocicação” do Saci e de seu endereço para uma cultura infantilizante sejam as leituras procedidas tanto por Maurício de Souza como por Ziraldo que o tornaram personagem de Quadrinhos.  Por lógico, tudo ocorreu em consonância com as séries patrocinadas pela televisão nos episódios do “Sítio”. A importante sequência de histórias feitas para crianças, no Brasil, se inaugurou em 1952, na TV Tupi. O programa ficou no ar por 11 anos, se constituindo enorme sucesso. Em 1964, na abertura da ditadura militar, o programa infantil que contextualizava o Saci ganhou versão da TV Cultura de São Paulo e, em 1967, na TV Bandeirantes. Ainda que com intervalos, de 1977 a 1986, a Rede Globo de Televisão produziu o “Sítio”, com destaque para a presença do Saci.

Estava então caracterizado o novo Saci, nascido para entreter, não mais para criar problemas. E a figura do negrinho domesticado estava fixada, feliz ou infelizmente.