De onde teria vindo a lenda do Saci? Das três alternativas mais usuais – indígena, africana ou europeia – tive que prezar todas. Pensei de saída que, ante a impossibilidade de precisão, me era obrigatório apoiar, comodamente, no conceito de “metamorfose”
Pensando na gravidade da leitura crítica sobre tal posicionamento, restou apelar para o cenário antropofágico que caracteriza a moderna percepção da cultura brasileira como um todo. Sim, é inegável que a imprecisão da origem de figuras como o Saci leva à formulação de um modelo hegemônico que se materializa na conceituação do que é nacional. Nesse contexto, reina a estratégia das negociações, ou da incorporação e da reversão de tudo que vem “de fora” em nacional, brasileiro. Em certa medida, isto explicaria o Lobato contraditório, senhor de afirmativas – no caso do folclore/tradições – e negações – segundo a percepção da estética modernista. Mas, como nem só de Lobato se nutrem os argumentos sobre o Saci, me vi na contingência de complementos informativos.
O inseparável cachimbo foi vetado pelo politicamente correto
A fim de dar contorno analítico para a construção do Saci como personagem nacional, parti do pressuposto de que hoje ele é figura palatável, aceito, principalmente fabricado para crianças, ainda que cá e lá se valha dele como referência “exaltativa” de certa brasileiridade nacionalista. Fala-se, aliás, de uma dupla infantilização: do Saci adulto, negro raivoso, senhor das matas, tornado menino arteiro, e dele como personagem destinado às crianças. As duas faces dessa moeda negociam um longo processo de apresamento e construção do personagem, estabelecido segundo a imagem e semelhança da cultura que atesta o perfil brasileiro negociador.
Outro elemento considerável nesta análise é o fato desse personagem caminhar progressivamente como tema pedagógico, lúdico, e, nesse processo, validado como estratégia ideológica, se confirmaria o princípio da antropofagia, pois a imagem que hoje temos do Saci é de uma figura transformada. Sem dúvida, o padrão dado pela Rede Globo de Televisão nas várias versões do programa “Sítio do pica pau amarelo” mostra um garoto, negrinho/mulato simpático, de uma só perna, capuz e calça vermelhos. O Saci de nossos dias, não é mais o maldoso ente que atormentava a todos, mas um cativante malandrinho que faz suas travessuras engraçadas. De maneira sorrateira, em favor do “politicamente correto”, foram aliviados o olhar ameaçador e retirado o “condenável” pito/cachimbo, não mais solta fumaça pelos olhos. Mas, no longo processo “metamorfoseador”, isso é só mais um detalhe.
Saci do Sítio do Pica-pau Amarelo
Talvez os mais convincentes argumentos demonstrativos do processo de infantilização do Saci e de seu endereço para uma cultura infantilizante sejam as leituras procedidas tanto por Maurício de Souza como por Ziraldo. Por lógico, tudo ocorreu em consonância com as séries patrocinadas pela televisão nos episódios do “Sítio”. A importante sequência de histórias feitas para crianças, no Brasil, se inaugurou em 1952, na TV Tupi. O programa ficou no ar por 11 anos se constituindo enorme sucesso. Em 1964, na abertura da ditadura militar, o programa infantil, que contextualizava o Saci, ganhou versão da TV Cultura de São Paulo e, em 1967, na TV Bandeirantes. Ainda que com intervalos, de 1977 a 1986, a Rede Globo de Televisão produziu o “Sítio”, com destaque para a presença do Saci. Estava então caracterizado o novo Saci, nascido para entreter, não mais para criar problemas. E a figura do negrinho domesticado estava fixada.
Mas, e o outro Saci? Dando asas ao voo histórico afeito aos registros documentais, me permiti pensar no Saci como variante tropicalizado do diabo, antes formulado segundo os rigores europeus. Não há como deixar de aproximá-lo, em sua origem, dos entes satânicos, pois desde as cores usadas em suas representações como nas maldades inerentes ao seu papel, há sugestões de transferências. Contrastando com a versão daquele demo, pude pensar na gênese da “adocicação” do Saci que, entre nós, não manteve odores insuportáveis, perdeu o rabo e trocou o espeto pelo cachimbo e ao longo do tempo perdeu também o buraco das mãos por onde passavam brasas. As negociações, diga-se, seriam desdobradas progressivamente, até o completo controle do personagem, entre nós.
Saci como já foi imaginado em outros tempos…
Talvez, essa prática de tradução das severidades metropolitanas, na colônia, explique também outra hipótese interessante de aproximação entre as entidades maléficas europeias e a possibilidade da origem paraguaia do Saci. Há informações que prezam, desde os primeiros tempos de contato, a identificação do nosso Saci com Yasy Yateré, alguém que teria, no mínimo, atitudes próximas, principalmente o zelo das matas e as tapeações com pessoas de fora. Nesse caso, desde o século XVIII, dada a dispersão dos Guarani rumo a diferentes espaços brasileiros, seria possível a difusão pelo Brasil.
… Saci do Ziraldo e o…
E há versões que contemplam detalhes regionais da adaptação do Saci. No Nordeste brasileiro, por exemplo, acredita-se que suas manifestações decorrem da raiva de um moleque que perdeu a perna num jogo de capoeira. No Norte, é comum aproximá-lo da ave Matintaperera, ave de pio estridente que, em 1973, foi incorporada na canção “águas de março”. Diga-se, aliás, que o álbum intitulado Matita Perê remete a uma tradição que diz de um pássaro noturno que vira gente durante o dia, assombrando os transeuntes perdidos na floresta. Uma referência indispensável remete à busca da origem da palavra Saci que, pode ter sido originada no termo tupi Sa + si, o que não deixa de sugerir ligações com o matintape’re.
Saci sem o cachimbo, do Maurício de Souza
O entendimento da transfiguração do Saci é condição afirmativa da adocicação ocorrida no personagem. E isso não acontece apenas na ficção. Também na “vida real” há transposições que vão além das várias denominações assumidas Brasil afora: Saci-Cererê, Saci-Trique, Saçurá, Mati-taperê, Matiaperê, Matimpererê, Matintaperera, Capetinha da Mão Furada.
O que importa mesmo no momento é verificar que a meditação sobre o Saci, de folclórico, de coisa do povo, escapou também do campo literário ou sociológico. O longo e complexo processo de adocicação remete à transposição da oralidade folclórica para a cultura de massa. E é aí que atua a televisão, o rádio, o disco. A chamada cultura de massa tem feito muito em favor da determinação de um novo perfil do povo brasileiro. E aí atuam vários instrumentos combinados.