para Paulo de Tarso Venceslau

“Se tivesse que escolher uma música para simbolizar os anos 1980 no Brasil seria “Que País é Este” (1987)”

 Para muitos, os anos 1980 chegaram como quem desce do trem numa estação sem pressa, mas também sem saber exatamente para ond”e ir. Era um tempo marcado pela espera, pela incerteza do futuro e pela urgência de mudanças. Época perplexa em que o Brasil ensaiava seus primeiros passos fora da escuridão do autoritarismo. No ar, a Abertura política enchia os pulmões democratas e mostrava a língua para militares em marcha de saída. Em cada canto, o aroma de mudança se misturava à incerteza, e, para quem viveu aquele transe, era como se o futuro nunca estivesse tão próximo e tão distante ao mesmo tempo.

Lembro-me dos dias de hiperinflação, em que o preço dos alimentos parecia obedecer ao ritmo do relógio. Reinava uma sensação estranha como se o chão pudesse se mover sob os nossos pés, instável, inquieto, mas indicativo de possibilidades. Ao mesmo tempo, surgia um novo avante, embalado pelo grito incontido que ecoava dos comícios pela liberdade, pela recepção dos exilados e volta dos soldados aos quarteis. Na cena política, uma nova estrela brilhava prometendo um tempo melhor. Aqueles anos, pois, desenharam mosaicos de contradições, onde cabiam recomeços – dura realidade para quantos viram seus sonhos triturados na década anterior. Mas o que ficou na memória não foi apenas a euforia da redemocratização ou o caos econômico – foi a sensação de estar vivendo um tempo único, intenso, que pulsava nas esquinas, nos becos e em versos cantados por jovens que renasciam para a sociedade.

É verdade que o rastro sinistro da hiperinflação riscava o céu amedrontado pelo desemprego e instabilidades políticas. Também era difícil apagar as marcas da desigualdade e da violência urbana expressas no crescimento da distância entre pobres e ricos, ambos sujeitos ao neoliberalismo e aos avanços da esfomeada globalização. E tão inseguro estávamos que acabamos na cilada de Collor de Mello, eleito exatamente no fechar dos anos 1980.

A par de tantos extremos e incertezas, porém, cintilava a juventude que no caso brasileiro foi marcada pelo auge do rock nacional, pelo ressurgimento de nova safra de cancioneiros e pela definição da qualidade de nossa televisão. Aliás, novelas se sucederam em sucessos galopantes como “Sétimo Sentido” (1982-83), “Guerra dos sexos” (1983-84), “Brega e Chique” (1987) até o ápice com “Roque Santeiro” (1988-89). Em todos os lugares ouvia-se “Menina veneno”, “Faz parte do meu show”, “Fora da Lei”. Então “Legião urbana” concorria como “Paralamas do sucesso”, que concorria com “Titãs”, que concorria com “Barão vermelho”, “Blitz”, “Kid Abelha”, “Capital inicial”, “Ultraje a rigor”, “Engenheiros do Hawaii”, uff, e tantos outros.

Os anos 1980, com todas as suas viravoltas, indo e vindo, mas sempre avançando, deixaram marcas profundas na identidade do Brasil que vivemos agora. Ainda que em termos de economia tenha sido período apelidado de “década perdida” e tenhamos suportado grande êxodo de brasileiros que deixaram o país, foi um momento de transição, de tensões e de esperanças. Tudo em busca de um país melhor porque politicamente mais aberto.

Entre a virada de página da ditadura cívico-militar e o renascimento da cultura, entre a euforia da redemocratização e as sombras do desemprego, vivemos uma década que parecia suspensa no ar, como se o país estivesse à beira de um futuro promissor, mas incerto e algo medroso. No entanto, foi justamente essa mistura de desafios e conquistas que forjou uma geração de brasileiros resilientes, capazes de olhar para trás com a consciência de que, apesar dos tropeços, a caminhada em direção a uma sociedade mais livre e diversa havia, enfim, (re)começado.

É preciso não perder o arco histórico daquela década, daquele tempo de busca da cara nova que o país buscava e então pode-se dizer que se começamos com o basta ao autoritarismo, se conseguimos finalmente eleger um Presidente pelo voto direto, foi com o mesmo impulso que em 1992 vimos os cara-pintadas nas ruas, creditando significado à luta anterior. Se tivesse que escolher uma música para simbolizar os anos 1980 no Brasil seria “Que País é Este” (1987), do Legião Urbana. A letra expressa a indignação com as injustiças sociais, políticas e econômicas daquele então, ecoando o sentimento de insatisfação e esperança de novos tempos democráticos. Essa canção reflete bem o espírito crítico e contestador de uma geração que viveu a transição da ditadura para a redemocratização, além de encapsular o senso de incerteza e revolta diante das desigualdades ainda presentes. Aliás, rendendo tributos aos anos de 1980 vale reprisar o refrão “que país é este?”. Temos respostas?