Elisabeth Förster-Nietzsche e o marido foram precursores de teorias sobre a pureza da raça

Confesso que tenho uma caidinha por dramas. Histórias trágicas me comovem e sou daqueles que choram no cinema, lendo ou mesmo ouvindo conversas alheias. Isso é um problema, garanto… problema para os outros, pois para mim é sintoma de rotina. E como se a ficção não bastasse, coleciono histórias do tipo que Nelson Rodrigues chamou “da vida como ela é”.

Um dos casos que mais marcaram minha percepção é o da irmã de Friedrich Nietzsche. Antes, devo dizer que, como boa parte da intelectualidade ocidental, sou daqueles que estacionam sua reflexão na obra do iconoclasta alemão que abalou sensibilidades. Elisabeth Förster-Nietzsche era o nome da moça que imigrou para o Paraguai em 1886 junto com seu marido, Bernhard Förster. Precursores de teorias sobre a pureza da raça, ambos resolveram se mudar para um meio onde fariam a diferença e partiram com o objetivo de fundar uma colônia para alemães chamada “Nueva Germania”, localizada no Departamento de San Pedro.

A proposta claramente rendia tributos às ideias nacionalistas e antissemitas. Bernhard Förster era um fervoroso defensor de ideias supremacistas alemãs e acreditava em criar uma comunidade “pura” racialmente, longe da Europa. Elisabeth compartilhava dessas ideias. É preciso lembrar que, por aqueles dias, a Alemanha passava por transformações políticas e culturais que desagradavam o casal, especialmente no que se referia à convivência multicultural. Foi, pois, com tal ímpeto que optaram por fundar Nueva Germania, projetada como um experimento social para criar uma sociedade baseada em ideais racistas e nacionalistas,

O projeto foi um desastre. As condições climáticas do Paraguai, a falta de experiência agrícola do grupo de colonos e os atritos internos levaram ao fracasso da colônia. Bernhard Förster acabou se suicidando em 1889, e Elisabeth retornou à Alemanha. O suicídio de Förster foi dramático: cercado por dívidas e cheio de inimigos, em particular dos parceiros que vieram com ele para o Paraguai, ele bebia muito e acabou envenenando-se com morfina e estricnina em seu quarto no Hotel del Lago, em San Bernardino, Paraguai, no dia 3 de junho de 1889.

Após o retorno, Elisabeth se dedicou à manipulação dos escritos de Nietzsche, alinhando-os aos seus ideais antissemitas. Seu irmão, entretanto, jamais compartilhou dessas ideias. Pelo contrário, Nietzsche era um crítico ferrenho do nacionalismo alemão, do antissemitismo e da ideia de uma “raça pura”. Em suas cartas, ele chegou a chamar seu cunhado de “energúmeno antissemita” e rompeu com a irmã justamente por seus posicionamentos racistas e ultranacionalistas. Infelizmente, já debilitado mentalmente, Nietzsche não pôde impedir que Elisabeth reescrevesse sua obra e a adaptasse à ideologia que mais tarde serviria de base para o nazismo.

Nos anos seguintes, especialmente após a morte do filósofo em 1900, Elisabeth tomou para si a responsabilidade de administrar seu espólio e editou seus escritos de forma tendenciosa, distorcendo seu pensamento para que parecesse alinhado às ideias que ela e seu falecido marido defendiam. Graças a essa intervenção, Nietzsche passou a ser visto como uma espécie de precursor ideológico do nazismo, uma imagem que persiste até hoje, embora estudiosos sérios tenham desmentido essa apropriação.

Durante o regime nazista, Adolf Hitler e outros líderes do Terceiro Reich utilizaram a imagem e os escritos manipulados de Nietzsche para legitimar suas próprias ideias. Elisabeth, já idosa, chegou a receber Hitler pessoalmente e fez questão de apresentá-lo como uma continuidade do pensamento do irmão, algo que, paradoxalmente, Nietzsche repudiaria se estivesse vivo. O conceito de “super-homem” nietzschiano, que na obra do filósofo representava um ser que supera as amarras da moral tradicional para criar seus próprios valores, foi vulgarizado e transformado pelo nazismo em uma justificativa para a supremacia racial ariana. A negação da moral judaico-cristã, que Nietzsche via como um entrave à emancipação do indivíduo, foi deturpada como uma apologia ao extermínio dos judeus.

Historiador afirma que não existe qualquer registro de que Hitler teria lido Nietzsche

E então a tragédia se conclui não apenas pelo fracasso do empreendimento da Nueva Germania, mas também pelo estrago irreversível na recepção da obra de Nietzsche. O irônico dessa história é que, apesar dos esforços de Elisabeth e de sua manipulação dos textos do irmão, a verdade acabou vindo à tona. Hoje, os escritos de Nietzsche são amplamente estudados, e sua crítica à moral e à religião continua influente. Ao mesmo tempo, as ideias de seu cunhado e de sua irmã se tornaram exemplos da arrogância e do fracasso das ideologias supremacistas.

Se existe alguma moral nessa história, talvez seja a de que nem sempre a traição de um pensamento consegue apagá-lo. Elisabeth tentou moldar Nietzsche a seu gosto, mas sua própria tragédia familiar serviu apenas para evidenciar o abismo que separava os dois. No fim, foi a irmã que sucumbiu às sombras da história, enquanto Nietzsche continua sendo lido e debatido, livre das amarras que tentaram lhe impor.