Licenciamento ambiental
Pode ser votado hoje na Câmara um projeto de lei que vai deixar muita gente com saudade das “boiadas” de Ricardo Salles. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), colocou em pauta no plenário a mãe de todas as boiadas — a extinção do licenciamento ambiental no Brasil.
A proposta do deputado Neri Geller (PP-MT), escrita sem debate público, quebra a espinha dorsal das regulamentações ambientais no Brasil. O desmonte que se vinha fazendo por decretos e portarias agora é proposto no atacado.
O licenciamento ambiental é o principal instrumento da Política Nacional de Meio Ambiente. Ele é disciplinado por resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente e legislações subnacionais, que regulam o controle prévio da poluição e da degradação ambiental. Foi graças ao licenciamento que saímos da idade das trevas em que bebês nasciam sem cérebro em Cubatão, devido à poluição industrial.
A poluição industrial do meio ambiente gerou crianças sem cérebro
Mas o licenciamento também é a Geni da economia. Ele leva a culpa por obras que atrasam, por infraestrutura que não é feita, pelo país que não anda. É considerado um “entrave”, algo a afastar.
A morosidade no licenciamento ambiental não é regra. O Ibama cumpre a maioria dos prazos. As demoras decorrem de vários fatores, desde falta de estrutura nos órgãos ambientais estaduais, que expedem a maioria das licenças, até projetos malfeitos, que põem gente e ecossistemas em risco.
Nos últimos 17 anos, várias propostas de uma lei geral de licenciamento foram apresentadas no Congresso, a fim de uniformizar suas regras. A de Geller, costurada a portas fechadas com lobistas da indústria e do agronegócio, é a pior de todas. O substitutivo transforma o instituto do licenciamento ambiental em exceção, virtualmente eliminando-o. Faz isso de duas formas.
Primeiro, cria uma longa lista de atividades que, de saída, estão isentas de licenciamento. Entre as 13 categorias com passe livre estão “melhoramento” da infraestrutura em instalações preexistentes. Quase tudo cabe nessa expressão, que viabilizará dispensa até para ampliação de obras não licenciadas. A agropecuária mereceu um artigo inteiro só para tratar de suas isenções. Empreendimentos de “porte insignificante” também serão eximidos de licenciamento. Mas quem define o que é “porte insignificante”? Segundo o projeto, cada estado e cada município. Se Minas Gerais decretar que barragens de rejeitos têm porte insignificante, nenhuma delas precisará mais de licença por lá.
A segunda forma pela qual o texto faz do licenciamento letra morta é a disseminação de uma “licença por adesão e compromisso”, ou LAC, espécie de auto licenciamento pela internet. O texto de Geller prevê que apenas empreendimentos de significativo potencial de impacto estão fora da LAC. O que deveria ser exceção torna-se regra. A LAC será aplicada à ampliação e pavimentação em instalações preexistentes, caso da rodovia BR-319, que cruza a área mais preservada da Amazônia, com enorme potencial de desmatamento.
O projeto é marcadamente inconstitucional e, se aprovado, criará insegurança jurídica e judicialização — travando as obras que se alega querer “agilizar”. Além de tudo, tende a causar uma espécie de “guerra fiscal ambiental”, com estados e municípios competindo entre si pela regulação mais frouxa, que atraia mais empreendimentos.
O desmatamento tem batido recordes em 2021
Uma lei dessas pode até servir para Lira quitar a fatura com os ruralistas que o elegeram. Mas põe o país em risco. No momento em que o mundo se alinha para eliminar as emissões de gases de efeito estufa, o Brasil muda a legislação para favorecer poluidores e desmatadores. A entrada do Brasil na OCDE e o acordo comercial com a Europa serão ainda mais prejudicados.
É mais um passo para o isolamento internacional do país. Ernesto Araújo pode ter ido embora, mas sua profecia sobre tornar o Brasil um pária internacional está se cumprindo.
*Urbanista e advogada, especialista sênior em políticas públicas
do Observatório do Clima e foi presidente do Ibama.
**Advogado, foi deputado federal constituinte, secretário de Meio Ambiente do Estado de São
Paulo e presidente da Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente