Como jornalista nascido nos Estados Unidos que passei quase um toda a vida adulta no Brasil, é inevitável que, em situações sociais, alguém lance em minha direção um, “e o Trump? Vai perder agora, hein?!”

Geralmente soa mais como oração do que como pergunta, mas eu respondo mesmo assim, muitas vezes provocando um certo choque e bastante preocupação quando digo: “Não. Na verdade, se eu tivesse que apostar, apostaria na vitória dele – ou, melhor ainda, na derrota de Biden.”

Sejamos claros – a data da votação ainda está longe e tudo é possível, especialmente nesta eleição sem precedentes com dois candidatos absurdamente impopulares.

“Mas Trump foi condenado por 34 crimes e sofreu dois impeachments!”, eu ouvi recentemente. “Como as pessoas podem votar nele depois disso?!”

Minha resposta impopular: “Bem, você votou no Lula?”

Milhões de pessoas votaram em Lula porque acreditavam que ele era inocente – ou pelos menos que as acusações contra ele eram injustas e tinham mais motivação política do que base fatual. Outros milhões votaram porque achavam que ele era culpado de alguma coisa, mas que Lula era melhor do que a alternativa.

Não me entenda mal, Trump e Lula são políticos MUITO diferentes e seus casos têm circunstâncias e fatos totalmente distintos, mas a psicologia dos eleitores não é muito discrepante.

A questão não é realmente se os eleitores acham que Trump é culpado, mas sim:      Eles se importam com a acusação? (O impeachment de Clinton devido a um escândalo sexual melhorou seu índice de aprovação entre o eleitorado, porque foi visto como vítima de uma caça às bruxas)

Eles acham que isso é mais importante do que:

Inflação alta e problemas econômicos para os cidadãos comuns sob Biden;

A aparente incapacidade ou falta de desejo de Biden de lutar para fazer mudanças substanciais e populares;

O genocídio contínuo que Biden está perpetuando em Gaza e o conflito mais amplo no Oriente Médio;

O fato de Biden parecer mais adequado para sentar-se em uma cadeira de balanço em sua varanda do que para liderar o país mais poderoso do mundo.

Alguém realmente acredita que mais quatro anos de Biden tornarão suas vidas melhores?

Alguns segmentos do governo Biden deram passos interessantes em questões importantes (embora nem sempre politicamente atraentes), como a defesa do consumidor e o apoio sindical.

Mas o presidente também desistiu de algumas de suas maiores promessas de campanha sem demonstrar a mesma tenacidade que se vê nos republicanos. A sensação é de estagnação e derrota: “aceite as migalhas que receber, caro eleitor, e fique feliz por isso.”

A política dos EUA está cada vez mais deprimente e a culpa não é apenas de Donald Trump. Ele é um sintoma da podridão que permeia profundamente a existência diária nacional e que tem tornado praticamente impossível fazer mudanças progressistas (leia-se: a favor do trabalhador e contra os oligarcas) há pelo menos quatro décadas.

A sensação que se tem quando se vive nos EUA é que não há quase nenhum serviço essencial que não seja intermediado por uma empresa parasita que tem deteriorado constantemente a qualidade e aumentado os preços. E não é uma coincidência que essas empresas também são os maiores doadores para os democratas e os republicanos. Então, quem representa a nós, a grande maioria?

Sem qualquer esperança de um resultado melhor sob os democratas, por que não apostar no cara que diz “vamos queimar tudo” – mesmo que seja um vigarista? As pessoas estão cansadas, estressadas e ansiosas. E com razão.

Os democratas mais abastados e que se beneficiam do status quo têm dificuldade em admitir isso, mas Biden é claramente outro símbolo dessa podridão. Ele passou a vida apoiando escolhas que corroeram os pilares dos Estados Unidos – seja por meio de guerras criminosas ou políticas neoliberais que produziram a maior transferência de riqueza das classes trabalhadoras para as mãos do 1% mais rico.

Essa negação é o motivo pelo qual eles gastam tanta energia tentando culpar Trump por tudo, em vez de se concentrarem em mudanças contundentes que melhorariam seus resultados eleitorais – e a situação do país.

Na verdade, os democratas fizeram exatamente o oposto: atacaram, difamaram e tentaram destruir a crescente ala de esquerda do partido que representa a melhor oportunidade de derrotar o espectro do fascismo que paira no horizonte. Esses ataques continuam durante as eleições para o congresso deste ano.

Em 2008, Biden e Barack Obama foram eleitos com uma plataforma de “esperança e mudança”, depois que a psique do país foi abalada pelo 11 de setembro, pelas guerras fracassadas no Iraque e no Afeganistão, pela mentiras que justificaram essas guerras, pela crise econômica global “Made in the USA” e pelo cinismo e medo generalizados dos anos sob George W. Bush.

Os amerigringos estavam mais do que prontos para “esperança e mudança”. Era uma propaganda enganosa. A confiança no Partido Democrata e, talvez, na política nacional foi irremediavelmente quebrada. Obama estava em posição de mudar fundamentalmente o curso da história. Ele tinha as grandes corporações e os bancos de joelhos e a vontade popular de levar adiante um projeto político realmente ambicioso.

Em vez disso, ele deu mais poder aos bancos, desperdiçou a chance de criar um SUS gringo e rapidamente desmobilizou o movimento popular que o elegeu. Em suma, ele escolheu ajudar seus grandes doadores e decepcionar seus eleitores. (Talvez você consiga ver alguns paralelos com a política brasileira…)

Biden – que era o Alckmin de Obama – aplaudiu com entusiasmo essas escolhas que foram tão responsáveis pela vitória de Trump em 2016 quanto qualquer outra coisa. O fato de Hillary Clinton ser essencialmente uma versão menos carismática, menos autêntica, menos inspiradora e menos progressista de Obama certamente não ajudou – nem as escolhas extremamente arrogantes de sua campanha eleitoral.

Parece que Biden está repetindo muitos dos erros que Hillary cometeu em 2016 e criando novos – entre eles, a sua conivência irrestrita com o genocídio perpetrado por Israel em Gaza com armas doadas pelos EUA.

Ao apoiar – e financiar – oito meses de derramamento de sangue, Biden está acentuando todas as maiores falhas que o eleitorado percebe nele e reduzindo a distância que o separa de Trump. Essa política afasta os eleitores jovens, que em sua esmagadora maioria apoiam os direitos dos palestinos, e, assim, Biden está enfatizando sua maior fraqueza eleitoral: a percepção de que ele é velho demais para o cargo.

Ao insistir que não apoia a matança, mas que não tem poder para pressionar Netanyahu a aceitar o cessar-fogo, Biden está projetando fraqueza, em comparação com a figura de “homem forte” que Trump tenta incorporar.

E, ao ignorar completamente os direitos humanos e a decência básica, em Gaza e nas políticas duríssimas contra imigrantes, ele acaba com a suposta dicotomia entre “a barbárie de Trump” e a “ordem internacional baseada em regras” que Biden afirma representar.

Lembre-se de que nos EUA, onde o voto é opcional, as campanhas são cada vez mais vencidas e perdidas não por convencer as pessoas a votar em você, mas por convencê-las de que tudo isso é relevante para a vida delas e que vale a pena o esforço de votar.

Em suma, lamento dizer que existe uma boa chance de ver a volta de Trump à presidência depois de 5 de novembro – não por qualquer amor que eu tenha por Biden, é claro, mas porque isso terá impactos negativos dramáticos no mundo. A ação global sobre a mudança climática é a frente mais óbvia, mas imagine o que poderia ter acontecido com o golpismo de Bolsonaro nas eleições de 2022 se Trump fosse presidente, em vez de Biden, por exemplo.

É por isso, principalmente, que as eleições nos EUA são importantes para todos nós e que devemos prestar atenção.

Planejo escrever mais sobre esse assunto nos próximos meses e talvez até gravar uns vídeos. Se você tiver perguntas específicas que gostaria que eu ou outra pessoa na equipe abordasse, me avise.

Tentarei responder ao longo dos próximos meses – com preferência, é claro, para as mensagens de nossos membros.

13.06.24

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*Andrew Fishman é presidente do Intercept Brasil, veículo que cofundou em 2016 e onde foi editor geral até o final de 2020. Trabalhou no Intercept norteamericano como repórter de 2013 a 2022. Suas reportagens têm se concentrado em segurança, tecnologia, direitos humanos, Brasil e nossos documentos vazados por Edward Snowden. Ele integrou a equipe que ganhou o Prêmio Vladimir Herzog por revelar detalhes secretos da relação da Operação Lava Jato com o governo dos Estados Unidos.