Um pombo branco pousou em minha janela e por dias me acompanhou na minha dissertação ao IHGB
Na longitude de cerca de mil crônicas publicadas no jornal Contato, já escrevi alegre, triste, chorando, com o fígado, com o coração, jamais indiferente. Há uma discussão ardente sobre o sentido autobiográfico dos cronistas. Baseado em minha experiência, não tenho dúvida que em cada texto me traduzo um pouco, derreto mágoas e dilato alegrias. Dia desses, dei um passeio por algumas páginas e me entrevi contando intimidades, realçando fatos cotidianos, expressando ideias e protestos. E me achei no alto de uma montanha, admirando o vale onde se misturam pedaços do que sou. Isso não coisa pouca, creiam.
A cerimônia de minha posse como Membro Honorário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) foi um daqueles atos culminantes de uma carreira dedicada ao ensino e pesquisa histórica. A decorrente festa pessoal surpreendeu a pacatez da casa interior, forçando o redesenho da decoração tão despreparada para receber visitas. E eram aguardados alguns entes mais que queridos, escultores do melhor de mim. Não que as coisas estivessem em desordem, mas foram se ajeitando de maneira cumulativa e era chegada a hora de favorecer arrumações. Não quis fazer alarde, pelo reverso, optei por convites pontuais e cultivei vindas de quantos puderam comparecer. E lá estavam todos os segmentos representados: meus filhos e noras, meus colegas de missão, ex-alunos e amigos. Nem faltou o perfume de encantados que me vigiam de outro estrato. Assim empresto do Chico Buarque a expressão “foi bonita a festa, Pá, fiquei contente”.
Emocionado, recebendo a homenagem do Dr Emilio Franchischetti no IHGB
Segundo o rígido protocolo, deveria dissertar sobre algum aspecto relevante do longo desenrolar intelectual. Perfilei temas diversos e enamorado de todos tive que escolher um. Foi uma opção difícil, mas correta. Elegi “Monteiro Lobato, o escritor e suas circunstâncias”. A seleção trançava um motivo acadêmico e um emocional. O primeiro derivando de textos destilados de tantas reflexões sobre Lobato; o segundo do “eterno retorno”. Nos limites de meu lugar estreito, senti-me qual Ulisses voltando ao lar. E tinha que ser o Lobato de Taubaté, da minha cidade de afeto.
Como enredo de novela, a preparação foi plena de acontecimentos: uma inesperada complicação nos olhos atormentou meus dias e madrugadas; uma forte gripe insistiu em me adonar, e não faltando nada mais, amanheci afônico. A ajuda de amigos promoveu soluções milagrosas: da vista, da gripe, do mal-estar físico, e um exercício de voz salvou-me do silencio. Mas, em paralelo a toda essa montagem um fato especial enfeitou o processo: um pombo branco pousou em minha janela e por dias me acompanhou.
Foi assim, selecionei vasto material de leitura e documentação capaz de instruir o conteúdo da apresentação. Era muita coisa, leitura em detalhes precisos e anotações que demandavam recortes oportunos. Noites se emendaram em dia que se perdiam em horas continuadas. E as madrugadas me implicaram em busca de sínteses. Foi numa dessas horas perdias, no escuro de uma noite, que notei, imaginem, o pombo branco. Até supus delírio, bizarrice minha. Olhei algumas vezes e lá estava a figura diferenciada dos pares. Já disse em crônica passada que uma das mais feias coisas da Cidade Maravilhosa são os pombos. Os venezianos da Piazza de San Marco são esbeltos, valentes, em bando marcam presença. Diversos, os nossos são esquálidos, fraquinhos. Pois bem, aquele era simplesmente lindo. Demais.
Comemorando com filhos, nora e neto após a cerimônia no IHGB
A cada olhar o pombo estava lá me espiando. Pensei no Divino Espírito Santo e evoquei inspiração. Aconteceu. Permiti-me, contudo, em divagações progressivas. Confesso que me deixei avassalar pelas lembranças dos leves rabiscos de Picasso. Depois lembrei-me de Noé na bíblica barca aguardando o pombo com o ramo de oliveira. Não esgotei o repertório religioso e a menção ao exu feminino, a pomba gira do candomblé, me fez antever a abertura dos caminhos. E a referência greco mitológica trouxe de volta o pássaro de Vênus, anunciando mensagens amorosas.
Creio que poucas vezes em minha vida fiquei tão intrigado, ainda que repartindo o conforto dado pela insistente presença. De onde teria vindo aquele ser misterioso e oportuno? Moro no décimo segundo andar de uma região pouco dada a pombos, então, qual seria a história daquela ave branquinha e de negros olhos. A cada vez mais encafifado, não resisti e registrei o caso numa das poucas redes sociais a que pertenço. Não demorou para que uma prima dissesse “é seu amor que veio te fazer companhia”. E fez, mesmo mantendo nossa crônica viuvez. Crônica por crônica nesta escrita deixo gravada a passagem do alvíssimo pombo que soube vir me alentar e, depois, sem aviso, voou sem se despedir.