Lobato e o saci estão acima da simplificação rasteira do bem e do mal
Muito tem se falado a respeito da figura do saci na obra de Monteiro Lobato. No aborrecido debate sobre o racismo, os extremos repontam garantido que o saci seria a primeira manifestação do “preconceito de marca” lobateano, mostrado como um marginal periférico; na outra ponta, alguns entusiastas com igual extremismo o revelam como propositor do “primeiro herói negro da nossa literatura”. Exageros e polarizações à parte, resta notar a gênese da criação de um personagem capaz de motivar reflexões sobre a memória popular repontada na cultura moderna.
Foi com empenho investigativo que entre os dias 27 de janeiro e 6 de março de 1917, nas páginas do jornal O Estado de São Paulo, Lobato fez estampar resultados de enquetes que, afinal, viraram seu primeiro livro “Saci-pererê: resultado de um inquérito”, publicado em 1918. Caracterizado o personagem, restava dar-lhe uma imagem. Foi neste sentido que o então estreante escritor propôs um concurso capaz de oficializar e sugerir uma forma tangível ao saci. Sobretudo, ao diabrete faltava uma figura, ou pelo menos o protótipo de imagem que deveria conter elementos básicos derivados das descrições colhidas.
Aspecto pouco notado na formulação folclórica, a junção descritiva aliada a imagem demandava resultados práticos e de efeitos estéticos captáveis, simples e eficientes. E sem uma figura básica, como marcar o saci na memória cultural brasileira? Convém não deixar para planos secundários que essa aventura remetia a um tempo em que a imagem passava a integrar os relatos jornalísticos. Os impressos então ganhavam função também por juntar texto e representações gráficas. Além disso, no momento da elaboração do “Inquérito”, o nascente escritor fazia vezes de crítico de arte, lance que exigia argumentos como satisfação aos leitores, em particular frente a um dos desafios maiores do tempo: a presença das artes plásticas junto à opinião pública. Uma dessas situações, por exemplo, diz respeito a um detalhe pouco explorado no conflito entre nossos modernistas e Monteiro Lobato. O virulento artigo “Paranoia ou mistificação”, escrito para comentar a Arte Moderna, transparecida na exposição de Anita Malfatti aberta em São Paulo em dezembro de 1917, tem servido como certidão do rompimento das partes. O que pouco se diz é que antes daquela rumorosa publicação, houve contatos bastante eloquentes entre Lobato e alguns personagens do Modernismo, como Oswald de Andrade e a própria Anita Malfatti. Um desses elos, aliás, se deu exatamente em função do saci, ou melhor do sentido do debate nacionalista que buscava fecundar a cultura com bases folclóricas.
Anita Malfati: sua crítica desapareceu sem deixar vestígio
No agitado contexto do “Inquérito sobre o saci”, Lobato propôs um concurso de pintura e escultura, cujo tema era a promoção da imagem do saci. Ainda que o certame fosse dirigido exclusivamente a artistas nacionais, o vencedor foi um imigrante radicado em São Paulo, o italiano Cipicchia, que apresentou uma figuração denominada “O Saci e a Cavalhada”. Anita Malfatti foi das poucas concorrentes a enviar um trabalho que, por difíceis explicações, desapareceu sem deixar vestígios físicos. Dela apenas se sabe exatamente pelo parecer de Lobato, em artigo publicado na Revista do Brasil, onde revelava que, no setor de pintura, o trabalho da concorrente fora desclassificado mas, segundo Cassiano Elek Machado, mereceu extenso comentário, antecipando a insistência na questão dos “modismos”:
“A sra. Malfatti também deu sua contribuição emismo. Um viandante e o seu cavalo, em pacato jornadear por uma estrada vermelha degringolam-se numa crise de terror ao deparar-se-lhes pendente duma vara de bambu uma coisa do outro mundo. Degringola-se o cavaleiro, degringola-se o cavalo tentando arrancar-se do pescoço, o qual estira-se longo como feito da melhor borracha do Pará. Gênero degringolismo. Como todos os quadros do gênero ismo, cubismo, futurismo, impressionismo, marinetismo, está hors-concours”.
Num esforço de conciliação, sem se desmentir, mas abrindo caminho para algum diálogo, finalmente, Lobato pontificava:
“Não cabe à crítica falar dele porque o não entende: a crítica neste pormenor corre parelha com o público que também não entende. É de crer que os artistas autores entendam-nos tanto como a crítica e o público. Em meio deste não entendimento geral é de bom aviso tirar o chapéu e passar adiante”…
Ainda que o “Inquérito”, somado aos escritos para crianças, se porte como marco inaugurador da invenção do saci brasileiro, não há como escapar dos efeitos daquele certamente artístico que tanto remetia ao gosto de uma crescente classe média como de uma sociedade urbanizada em busca de padrões culturais próprios. Pela dimensão plástica, a iniciativa de Lobato dava forma a caracterizações que até então eram, majoritariamente, escritas ou oralizadas. Isso não bastava mais. A revelação da materialidade pela pintura, escultura, cinema e fotografia, revela também a obstinação de Lobato para a atualização do estatuto cultural brasileiro moderno integrando vários códigos. O apelo para o chamado folclore – ou como preferia Lobato “mitologia brasílica” – implicava escolhas de personagens assimiláveis pelo gosto geral e, nesse sentido, entende-se que a marca do estereótipo nacional entraria como argumento debelador das tradições importadas.
Mais do que discutir racismo em Lobato, antes de tudo há de se buscar fundamentos de sua obra e trajetória de seus personagens, condição capaz de tirar do limbo simplificações que não param de incomodar. Tanto há a se explorar no campo da investigação sobre a obra do mais importante escritor latino-americano na área da literatura infantil que chega a ser exaustivo colocá-lo entre o bem e o mal. Lobato está acima disso. E o saci também.