Bonita é pouco, linda; culta é pouco, cultíssima; ativista é pouco, militante. Falo de Heloisa Teixeira, mulher de letras que um dia foi Buarque de Holanda, nome incômodo emprestado do primeiro marido. E vale começar por aí: incomodada com o nobre aposto, aos 83 anos – portanto, dois anos passados –, resolveu adotar Teixeira em homenagem a sua mãe. Nada mais coerente e adequado a uma feminista que, além de alterar os registros, tatuou nas costas o novo aposto. Interessante que não mexeu no primeiro nome, Heloisa, e adivinho o motivo, pois Heloísa significa “guerreira brilhante”, “aquela que brilha na batalha”, “combatente gloriosa”, “guerreira famosa”, “famosa na guerra”. Nada mais adequado: Heloisa Teixeira…

Imagino que não faltarão epitáfios, todos celebrando a imortal da Academia Brasileira de Letras, a aluna graduada com distinção em Letras Clássicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1961), com mestrado em Letras, onde foi aluna querida e assistente de Afrânio Coutinho, que também a orientou no doutorado em Letras (1979). Fez pós-doutorado em Sociologia da Cultura na Columbia University (1982-83). Em termos docentes, foi professora de Teoria Crítica da Cultura da Escola de Comunicação e, por um tempo, Coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Não faltarão complementos formais que, por mais que se estendam, jamais darão conta do labor dessa feminista assumida, internacionalmente reconhecida.

A par de tantas loas, sinto-me convidado a revelar o impacto da amiga Helô em minha vida. Aliás, da presença determinante dela numa página que virou a leitura do Brasil em termos de uma de suas causas mais determinantes: a literatura marginal ou periférica brasileira. Permito-me valer de breve arco histórico para contextualizar melhor nossos encontros. Tudo começou em 1983, quando nos conhecemos na Universidade de Stanford, Califórnia, onde ambos atuávamos como professores convidados. Helô – como gostava de ser reconhecida por amigos – dava um curso sobre Literatura Brasileira, e eu ministrava outro sobre Monteiro Lobato. Afinamos leituras comuns e repartíamos seminários. Toda essa experiência foi inesquecível, mas houve um momento em especial quando, frente à leitura de O Presidente Negro, os estudantes, exaltados, questionavam sobre o racismo à brasileira.

O tempo passou, retornamos aos nossos nichos docentes: ela na Universidade Federal do Rio de Janeiro, eu na Universidade de São Paulo. Ainda que cordiais, tivemos novo encontro intenso quando eu fui Coordenador Geral do Congresso América 92, projeto pretensioso que implicava apresentações tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro. Com cerca de 5 mil inscritos e mais de 400 convidados internacionais, Helô cuidou da parte carioca e transformou a aventura em sucesso absoluto.

O relógio andou, e novamente nos encontramos, desta vez com consequências determinantes em nossos projetos pessoais. Fui ao Rio para entregar a uma editora interessada os originais do meu livro sobre Cinderela Negra: a saga de Carolina Maria de Jesus. Marcamos um inocente café, e, conversa vai, conversa vem, ela começou a dissertar sobre seu projeto afeito à literatura marginal. Meu Deus, como ela “denvaniava”! Olhos brilhantes, gestos largos, dissertava sobre a ambivalência da cultura brasileira, que tinha um arsenal periférico inigualável e apenas celebrava a norma culta, a expressão da elite. E eu com o texto da Carolina na mão. Trocando conversas, eis que, num repente quase abrupto, Helô rouba-me o pacote e, taxativa, diz: “Eu quero publicar esse livro”. Mais eloquente, pontificou: “Zéquinha” – era assim que ela me chamava –, “este trabalho tem que ter o selo da Universidade. Nada de publicar um texto de Carolina por uma editora burguesa… Pense no significado simbólico de ressuscitar Carolina pela Editora da UFRJ, e eu sou a responsável”. De tal forma foi convincente que tive que me explicar com a outra parte interessada. E, de fato, o livro saiu lindo, trabalhadíssimo, por ela, a quem agradeci como “madrinha”.

Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de Despejo

É preciso dizer que Helô já estava emprenhada na tal literatura marginal, empreendimento que depois a levou a se dedicar a trabalhos com a “Universidade das Quebradas”, mas o notável é que, mesmo sem consultar o probo corpo editorial, ela me incentivou a lançar os poemas de Carolina segundo uma Antologia Pessoal – ou seja, de acordo com uma seleção feita pela própria autora. E foi um sucesso enorme, capaz de quebrar paradigmas. E a cada encontro que tive com a amiga do coração, ela dava dois beijinhos, dizendo: “Um pelo Cinderela Negra, outro pela Antologia Pessoal“.

Hoje, me despeço da Helô, duplamente amargurado. Digo meu adeus: um pelo reconhecimento de uma afinidade que chega a termo sem o devido agradecimento em vida; outro pelo sucesso de sua luta pela ponte estabelecida por ela entre a elite da cultura erudita e a periferia.

E termino dizendo que o nome do meio de Heloisa é Severo. E como ela foi severa na luta por uma literatura brasileira mais democrática e integrativa. Adeus, Helô. Estou chorando e sorrindo: chorando de saudade antecipada e sorrindo pelo que fizemos juntos.