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Até ouço: enlouqueceu?… Como assim, Anitta?!… Anitta, aquela cantora performática escandalosa, indecente e atrevida? Professor, é dela que está falando?…

É sim senhora, e é sim senhor… Gosto da Anitta (Anitta com dois Ts, por favor) e a exalto com admiração e reverência. Na verdade, aprecio tudo dela e me explico com a garantia de quem reconhece uma carreira brilhante, retraçada com esforço casado com inteligência em ménage com muita tecnologia e produção. É claro que levo em conta o fato dela ter saído da periferia onde nasceu há 29 anos. Menina suburbana, batizada Larissa Macedo Machado, moça típica da Baixada Fluminense, esculpiu a própria trajetória de maneira eficiente e rápida, fazendo escolhas arriscadas, se insinuando no difícil território das maiores celebridades. Ainda adolescente foi vendedora de roupas em loja popular e estagiou na mineradora Vale do Rio Doce depois de concluir o ensino médio como técnica em administração. Por ter postado um clip no youtube foi convidada para gravar um funk e dai por diante…

Anitta hoje é uma das 100 personalidades mais influentes do planeta segundo pesquisa da prestigiada Vogue, endossada pela Time e pelo The New York Times. Conhecida como Brazilian Bombshell, a moça antes pobre e periférica, mora em Miami de onde cuida de sua carreira internacional. Tudo sem perder a conexão com o Brasil e com temas de nossa atualidade, atuando inclusive politicamente.

Madonna: “Nunca conheci uma garota como você antes”

Dizendo-se colecionadora de “primeiras vezes” Anitta se distinguiu mundo afora pelo flamejante clip do hit “Envolver”, mas antes ostentou um outro “Vai Malandra” no qual apontava as mazelas da nossa cultura: racismo, sexismo, desigualdade social. Não é desprezível conectar uma peça a outra, pois ambas revelam ardis do perfil que ela projeta no âmbito geral. Apostando no limite, na polêmica e no deboche, Anitta se põe numa lâmina cortante que questiona a moral e os bons costumes. Mas não é só isto. Há muito trabalho e perspicácia por traz desse sucesso estrondoso, comandado por ela mesma. Convém não esquecer que antes de sua estreia no showbis ela ralou muito e entre seus trunfos aprendeu inglês, francês e tem espanhol fluente. A soma de tantos remelexos justifica o recado de Madonna que lhe disse “nunca conheci uma garota como você antes”.

Anitta, de certa forma, emblema a maneira maliciosa pela qual o Brasil foi conhecido até um passado recente. De um jeito maroto, pode-se afirmar que ela recria o lastro estereotipado que nos distinguiu no mundo. Misturando música com espetáculo, sensualidade com provocação, a moça soube temperar a audácia de figuras como a própria Madonna e Lady Gaga e dar uma pitada tropicalista, marca do Brasil no imaginário global e da moderna malandragem entre nós.

No programa do Jô, que acaba de nos deixar

Por lógico não me refiro a bandidagem pura e simples, mas ao trejeito definido por Antônio Cândido ao dar contorno a um gênero literário presente desde “Memórias de um sargento de milícias” (1850), livro icônico de Manuel Antônio de Almeida. Aliás, um artigo memorável intitulado “Dialética da malandragem” o grande Antônio Cândido distinguiu o comportamento alegórico da nossa cultura em distância de outras manifestações populares. A dubiedade era o ardil distintivo. E dubiedade é o que não falta em Anitta. Mas não se trata de algo artificial, pois há uma naturalidade na expressão da cantora/ intérprete/ performática que sabe brincar com a própria imagem. Mesclando valores aparentemente antagônicos, trabalho e malícia, a aparente espontaneidade das apresentações de Anitta guarda um quê de irreverência, um jeito de se projetar no espaço picante.

Só Antônio Cândido para definir tanta alegoria

O trabalho com o corpo em Anitta é algo incrível, diga-se. Sem ser bonita, depois de meia dúzia de intervenções cirúrgicas, ela se apresenta dona de lascívia indisfarçável. E, claro, se vale de movimentos que beiram o escandaloso. E não para na cena do palco ou das telinhas. Ao revelar detalhes de tatuagens nas partes íntimas, por exemplo, é claro que causa polêmicas sem fim e impacienta conservadores. Mas é exatamente isto que a faz “vulgar com estilo”. E que sejam sem fim suas provocações que, afinal, nos convocam pensar nos limites da tolerância, num mundo que a cada dia está mais enquadrado nas molduras do bom-mocismo.