“Era o dia 31 de janeiro de 1968, véspera do ano novo lunar vietnamita, o Tet, quando se iniciaria o Ano do Macaco. A paz no Vietnã, garantia o general americano William Westmoreland, estava assegurada e a capitulação de Ho-Chi-Minh e dos vietcongues, os guerrilheiros vietnamitas, era questão de tempo”. (OGLOBO)
Ainda era madrugada quando milhares de guerrilheiros surgiram de todas as partes e de parte alguma, dos bueiros das ruas e dos túneis cavados na terra, atacando as principais cidades do país.
No calendário ocidental, aconteceu no dia 30 de janeiro de 1968. No Vietnã, era o primeiro dia do calendário lunar tradicional, feriado nacional. Uma trégua tácita fora estabelecida. Mas foi exatamente neste dia, há cinquenta anos, que se iniciou a chamada ofensiva do Tet. Para os guerrilheiros, uma insurreição geral. Para os seus inimigos, um momento de pânico.
Depois de violentos combates, impôs-se a retirada e o conflito se prolongaria até 1975, mas ali se tornou claro que os Estados Unidos e seus aliados não venceriam aquela guerra.
A guerra do Vietnã, nos anos 1960, estava em todos os jornais e noticiários de rádio e de televisão. Nos EUA, condicionou uma profunda divisão da sociedade. Em todo o mundo, havia os que defendiam a independência do pequeno país asiático e os que apoiavam a intervenção americana, em nome do anticomunismo. Por outro lado, era também herdeira da revolução chinesa, vitoriosa em 1949. E se inseria num contexto de guerrilhas populares que se espalhavam pela Ásia, África e América Latina, registrando vitórias históricas, como em Cuba, em 1959, e na Argélia, em 1962.
A violência não tinha mais limites
Embora muito distintas entre si, estes processos históricos inspiravam-se num paradigma, fundado no curso das guerras civis que ocorreram na Rússia entre 1918 e 1921. Constituíam este paradigma alguns aspectos básicos: a tomada violenta do poder; o esmagamento, pelas armas, dos inimigos; a instauração de uma ditadura política; e a execução, a partir do Estado, de um conjunto de transformações. Em nome do socialismo ou do nacionalismo, ideias que se entrelaçavam em muitos casos, organizaram-se governos autoritários que, negando na prática os valores democráticos, legitimaram-se através de reformas visando o bem-estar da população, a independência nacional e a prosperidade econômica.
O poder nasce da ponta do cano de um fuzil, dizia o líder comunista chinês, Mao Tsé-Tung: as armas precediam as palavras.
Tais referências estiveram presentes nas lutas dos anos 1960 e, em especial, no ano emblemático de 1968. As guerrilhas urbanas e rurais, a proposta de luta armada contra as ditaduras conservadoras ou contra invasores estrangeiros reiteravam a cultura política de regimes revolucionários ditatoriais. Quando conclamou a que se criassem “dois, três… muitos Vietnãs”, Che Guevara ecoava estas orientações e se fazia seu intérprete destacado. Como tantos outros, arriscou a vida, e a perdeu, destemido, lutando por suas ideias.
Foto antológica de vítimas de bombas de napalm
No entanto, ao longo destes anos quentes, e também em 1968, surgiu, embora de modo embrionário e tateante, um outro paradigma de mudança social. Apareceu nas lutas de estudantes, de mulheres, de muitos que reivindicavam a ampliação dos direitos democráticos, a elaboração de novos direitos, identitários (negros, indígenas, entre outros) ou direitos a exercer plenamente suas opções sexuais (movimentos gays) ou comportamentos sociais considerados desviantes (experiências com substâncias que ampliavam as possiblidades da percepção humana) ou construir, em comunidades, modelos alternativos de vida.
No âmbito deste novo paradigma, a luta pelo poder político já não era central, nem mesmo considerada indispensável. Tratava-se, antes e acima de tudo, de conquistar espaços de liberdade, criticando-se aí tendências autoritárias fossem elas quais fossem. O prioritário era persuadir as gentes, numa perspectiva a longo prazo e no contexto de transformações moleculares. O recurso à violência e os governos autoritários cediam lugar a uma perspectiva também revolucionária, mas de outra natureza, baseada na ampliação da democracia, que era urgente valorizar e aprofundar.
Guerrilheiros vietcongues examinam armamentos americanos
O interessante – e revelador – é que tais propostas foram ignoradas, rejeitadas e mesmo reprimidas não apenas pelos governos de direita, mas também pelas forças tradicionais de esquerda, no poder ou na oposição. Tanto os governos conservadores, nos EUA e na Europa, quanto as ditaduras políticas de esquerda (URSS, Cuba e China), configurando-se como forças frias, esmeraram-se em liquidar os movimentos renovadores dos anos 1960.
Conseguiram derrotá-los. Mas não os venceram. Atestam-no o vigor atual deste novo paradigma. Enquanto a guerra do Vietnã, vitoriosa, em 1975, tendeu a aninhar-se no passado, não abrindo perspectivas de futuro, os chamados novos movimentos dos anos 1960 continuaram, nas décadas seguintes, assumindo protagonismo relevante. Neles não são mais as armas que dão o tom, as palavras é que, agora, subordinam as armas. A catástrofe violenta, substituída pela persuasão e pela valorização da democracia.
Não seria este o melhor e mais fecundo legado dos anos 1960?
*Professor de História Contemporânea da UFF
Email: daniel.aaraoreis@gmail.com