Por favor, se tiver pudor, melindre ou falta de coragem, não continue esta leitura. Caso vá em rente, renuncie à hipocrisia e libere o melhor de sua sensibilidade para a inteligência poética, aquela que transcende o romantismo abstrato, tolo, pudico. Antes de tudo, valho-me da advertência feita por Marilena Chauí ao diferenciar pornografia de erotismo. A pornografia é campo da vulgaridade, do chulo e do escancarado, expressão distinta do erotismo, galante, sugestivo, ardente e prazeroso. E tudo ganha corpo quando se coloca em linha um dos mais prestigiados autores da língua portuguesa, Carlos Drummond de Andrade, que aliás nos deixou 40 poemas eróticos, provocantes, pouco conhecidos. Juntados depois dez anos de sua morte em 1982, os escritos engavetados viraram livro, “O amor natural” (https://prosaempoema.com/2010/02/26/o-amor-natural/).
Marilena Chauí diferencia erotismo de pornografia
Há reentrâncias interessantes na história dessa publicação que revela contraste absoluto entre a ousadia íntima ao detalhar nuanças sexualizadas e a timidez zelosa ao dispor ao público esses nada castos 36 versos (e quatro breves prosas). Aliás, dizia ele a respeito dessa interdição ter perdido “o bonde da pornografia”. Ah, pornografia?! Não; nada mais fino, bem-humorado, que a percepção erótica percebida desde logo no versejo drummoniano. Ainda nos anos de 1930, Mario de Andrade já assinalava a profusão de pernas, coxas, cheiros e tatos, presentes nos versos de estreia. Arrisquemos, pois, alcançar os escritos eróticos no contexto da extensa obra do “doce sacana”.
Há razões de sobra para considerar a produção de Drummond das mais usuais de serem apreciadas em fragmentos e das mais difíceis de compreensão conjunta. O primeiro ponto a considerar no horizonte da complexidade remete à inacreditável variedade de gêneros vertidos em poemas, crítica, tradução – entre crônicas e contos, deixou 17 volumes. Em face do monumental volume, autores como Raimundo de Carvalho separa o “bom Drummond” daquele mais popular, assinalando que nem tudo de Drummond é bom ou merece destaque. É claro que outros críticos, como Antônio Cândido, percebem em um, dois Drummonds, ambos intencionais e complementares: o que joga água na “grande literatura” e outro na “literatura de ocasião”. E Davi Arrigucci em continuidade exercita a leitura articulada dos endereços da escrita de Drummond que soube espiralar soluções diferentes. Ítalo Moriconi e José Miguel Wisnik endossam a diversidade dos vários gêneros exercitados pelo “discreto pornógrafo” evidenciando neles o tesouro de um autor que por ser variado soube o quê e para quem produzir.
Drummond assume “palavras que copulam”
Sem maiores preocupações com estilo e quilate literário, “O amor natural” revela dimensões claras na proposta poética de Drummond. Sem pudor disfarçado, há uma variedade de pormenores corporais que o autor assume de maneira fetichista, sem medo “das palavras que copulam”, como disse Affonso Romano de Sant’Anna no prefácio. Com estilo azeitado Drummond se vale de um repertório de palavras afloradas de uma sexualidade amordaçada: vulva, membro, vara, penetração, gozo, coito. Tudo, porém, sob a dimensão do “Amor natural” assim descrito no primeiro verso da série “Quem ousará dizer que ele é só alma?/ Quem não sente no corpo a alma expandir-se/ até desabrochar em puro grito/de orgasmo, num instante de infinito?”.
Mas de verdade, há uma referência que sintetiza e dá organicidade à toda fúria amorosa represada nesse Drummond: “a bunda” que, aliás, se presentifica em alguns dos mais atrevidos versos da sequência: “Coxas bundas coxas”, “A bunda, que engraçada!”, “Bundamel bundalis bundacor bundamor”, “No mármore de tua bunda” e “Era bom alisar seu traseiro marmóreo”. Diria que de todas as loas à bunda, uma goza o privilégio pela argúcia revelada que se esconde em detalhes “A Bunda engraçada”. Vejamos: “A bunda, que engraçada/ Está sempre sorrindo, nunca é trágica/ Não lhe importa o que vai pela frente do corpo/ A bunda basta-se/ Existe algo mais? Talvez os seios/ Ora — murmura a bunda — esses garotos/ ainda lhes falta muito que estudar/ A bunda são duas luas gêmeas/ em rotundo meneio/ Anda por si na cadência mimosa, no milagre/ de ser duas em uma, plenamente/ A bunda se diverte por conta própria. E ama/ Na cama agita-se/ Montanhas/ avolumam-se, descem. Ondas batendo/ numa praia infinita/ Lá vai sorrindo a bunda/ Vai feliz na carícia de ser e balançar/ Esferas harmoniosas sobre o caos/ A bunda é a bunda/ redunda”.
Wisnik endossa a diversidade exercitada pelo “discreto pornógrafo”
A primazia da bunda no gosto drummoninano por vezes não é explícita como nos versos indicados, e há nesta estratégia a entrega de realizações que superam a ordem moral permitida. Vejamos a citação presente em “A outra porta do prazer” onde revela “A outra porta do prazer/ porta a que se bate suavemente/seu convite é um prazer ferido a fogo/ e, com isso, muito mais prazer/ Amor não é completo se não sabe/ coisas que só amor pode inventar/ Procura o estreito átrio do cubículo/ aonde não chega a luz, e chega o ardor de insofrida/ mordente/ fome de conhecimento pelo gozo”.
Imagino perplexidades em julgamentos deflorados da moral alienada que faz da arte depurações convenientes a falsos moralismos, nunca discutidos. Imagino também a importância de questionar valores que merecem ser visitados em favor da beleza natural dos corpos. Aliás, vale terminar com um grito de êxtase dito pelo próprio autor “Já sei a eternidade: é puro orgasmo”. A arte erótica pode ser a transcendência.