No Levítico, livro da Bíblia, disse o Senhor, referindo-se aos animais que não podiam ser comidos: “vocês considerarão impuros o rato, os lagartos e o camaleão”.

Apesar de banidos do estômago humano, os camaleões são répteis singulares. Com dois olhos que se movem independentemente um do outro, mudam a cor da pele de acordo com o ambiente, a temperatura ou o estado em que se encontram.

O segundo turno das eleições do Rio de Janeiro evidenciou um camaleão à solta, e o pior é que ele quer se tornar prefeito. Assumiu a pele de um ser humano e conseguiu uma identidade, com nome e sobrenome:  Marcelo Crivella.

Diz-se amante da paz, mas empregou a violência contra um homem desarmado. Na época, tinha 33 anos, e atribuiu o ato a arroubos de juventude.  Fotografado e processado, conseguiu, num golpe de habilidade e de generosidade do delegado, levar o processo para casa e escondê-lo da curiosidade de seus semelhantes que insistem, até hoje, em caracterizar, de pura má fé,  o fato como “crime de subtração de documentos oficiais”.

Devotado, pregou na África a Boa Nova durante dez anos. Descobriu coisas de arrepiar e escreveu um livro sobre a sua experiência, publicado no Brasil em 2002. Nesta altura, não podia mais ser considerado um jovem. Ali escreveu que as religiões amarelas, hindus e africanas abrigam espíritos “imundos”. Outro achado foi que as doenças que afligem a humanidade, desde que Adão aceitou a oferta de Eva, são devidas a forças demoníacas e só podem ser curadas com o poder de Jesus.  Na introdução, afirma-se que os sacerdotes das religiões africanas são “feiticeiros e bruxos”, assim como “os pais, as mães e os filhos/filhas de santo” do Candomblé brasileiro. Indagado sobre o assunto, o camaleão atribuiu os escritos à atmosfera de guerras e superstições da África e à sua empolgação de pastor. Ele só queria o bem das ovelhas, nunca pretendera ofendê-las.

 

Marcelo Crivella

Marcelo Crivella

 

De volta ao Brasil, sagrado bispo, cantou num CD, sumido de circulação, loas aos chutes dados por um colega na imagem de Nossa Senhora Aparecida, o que não o impediu de posar, agora, com autoridades católicas, dizendo-se apoiado por elas, nem de se retratar, quando denunciado.

Num vídeo gravado em 2012, o camaleão pediu a compreensão das pessoas aos jovens marginalizados e homossexuais. Sustentou que eles não seriam “pau que nasce torto…”. A causa da infelicidade? Abortos frustrados. Mereceriam clemência, pois a experiência de perceber a própria mãe tentando assassiná-los desequilibraria qualquer um. O vídeo foi retirado das redes.

Em determinado momento, exausto de tão virtuosa pregação, Crivella pediu licença à Igreja a que pertencia para devotar-se a um outro tipo de sacerdócio. Virou senador da República pelo Partido Libertador.

Pouco depois, aderiu a uma aliança com o PT, reaparecendo na pele do Partido Republicano Brasileiro, dito, na época, de centro-esquerda, liderado pelo vice de Lula, José Alencar. O companheirismo deu frutos em 2012, quando Crivella foi investido ministro da Pesca e da aquicultura, para surpresa de muitos, inclusive dos peixes, cargo em que se manteve por dois anos, o que não evitou que   traísse seus aliados e quem o nomeou, votando pelo impeachment de Dilma Roussef, em 2016. Ao contrário de Judas, que traiu e morreu atormentado, Crivella traiu e se manteve vivo e serelepe, com aquele ito de veterano camaleão, capaz de vestir tantas peles quantas seja necessário. Para o quê, exatamente? É difícil de responder e o próprio Crivella, olhando o espelho, talvez não ache a resposta. O seu mote de campanha é “cuidar das pessoas”, mas como isto seria possível com votos das milícias e da extrema-direita? É verdade que o homem tem, no círculo próximo, assessores de passado esquerdista. Para a compreensão destas incongruências, é preciso recordar o recurso dos camaleões: um olho para um lado, o outro olho para o outro lado.

 

Marcelo Freixo

Marcelo Freixo

 

Uma coisa é certa: ele só perde a calma, quando se indagam as razões de tantas peles – as que teve e as que ainda terá. Marcelo Feixo fez a experiência no último debate e amargou insultos em troca. Ao invés de se explicar e interpretar seus desacertos, o bispo baixou do céu e desceu aos infernos.

Crivella faz lembrar uma fala shakespeareana: “Posso sorrir e matar enquanto sorrio/E proclamar-me feliz com o que me aflige o coração/Molhar as minhas faces com lágrimas fingidas/E acomodar a minha cara a todas as ocasiões…Posso acrescentar cores ao camaleão”.

O Rio tem uma alternativa, um outro Marcelo, o Freixo. Ele tem uma trajetória conhecida, de compromisso com a democracia e os direitos humanos.  Não esconde nem omite, não finge nem falsifica, e não acusa sem provas. Não creio que esta cidade, cosmopolita e herdeira de lutas democráticas e rebeldes, vá preferir o camaleão.

Quem votar no bicho, ou se abstiver, o fará à  própria custa.

 

por Daniel Aarão Reis, Professor de História Contemporânea da UFF

daniel.aaraoreis@gmail.com