Meu caro Papai Noel
Pois é, nem sei se este ano, em plena cultura de cancelamento, você virá segundo reza a tradição dezembrina. Mas precisamos tanto de Natais; como nunca “bom velhinho”. Nossa! Mesmo com todo aparato fake que nos envolve, com neve de brincadeirinha, roupa de veludo, capuz com pompom branco, botas, com todo aquele visual impróprio, queremos cantar jingle bell. Até a Simone repetindo então é Natal a gente engole com alegria. Juramos respeitar a carestia, e nem importa se o saco de presentes vier magro. Se decidir pela visita, faça boa viagem, mas não se iluda com a propaganda enganosa: a Terra continua redonda, apesar da insistência de débeis terraplanistas. E, por favor, cuidado com a fumaça das queimadas de nossas florestas e do Pantanal. São tantos focos meu querido Papai Noel, só até setembro deste 2020 foram quase 50 mil. Mesmo assim gostaria que viesse porque precisamos de alguma alienação, a realidade está dura demais. Venha de máscara, porém, para se proteger, pois é preciso cuidar de si, até porque o pessoal de Brasília é negacionista, não acredita na covid que já levou mais de 153 mil brasileiros para a cova real.
Presente em dinheiro só em parcelas, como o Queiroz
Insisto que venha, precisamos compensar a falta de entusiasmo das pessoas. E nem estranhe a modéstia das cerimônias: o real tão desvalorizado, o dólar tão alto. Isso, aliás, é convite para a compreensão de improvisos criativos. E por falar em dinheiro, caso queira dar algum para alguém, faça segundo a prática da família presidencial, em cash, e só em último caso deposite, mas em parcelas como ensinou o Queiroz que já doou 89 mil para a primeira dama.
Papai Noel, tudo está tão caro, olha só o preço do arroz, do feijão, que dirá do peru! Pelo visto nem mesmo chester com farofa disfarçará a carestia. Como não se deve deixar de brindar, quem sabe valorizaremos a caipirinha, a batida de maracujá ou coco. Prosecco, espumante, champanhe, vinhos, nem pensar, né!? Talvez dê para uma sidra, dessas bem baratinhas, daquelas que “cabem no orçamento”…
E por falar em festa, penso nos docinhos finos, aqueles de nozes, tâmaras, avelãs. Esses, por certo, cederão espaço para as cocadas, suspiros, doce de leite, paçoca. Acho que teremos panetone, pois se não sobrar dinheirinho para isto, os amigos cobrirão a lacuna – até imagino o amigo secreto trazendo um em embrulhado com enfeite. Com certeza, suponho que em termos de recrudescimento de nativismo nacionalista, em vez de roupas de marca, qualquer coisinha seja compensação possível. Nem ouso pedir um par de cuecas resistentes às batidas da Polícia Federal, mas, em havendo exceção para as crianças, não se esqueça de discernir entre o rosa e o azul; rosa para elas e azul para eles, pois há recomendação de autoridade vigilante. Devo, aliás, sugerir que não traga “arminhas” para as crianças, pois do jeito que andam as coisas em vez de brincar de carrinhos, bonecas, piões ou joguinhos lúdicos, os rebentos podem pensar em obedecer o mandatário mor.
Papai Noel, nem acredita: a escola da violência tem propalado lições que começam nos Palácios da capital federal e o que chamávamos de velha política rejuvenesceu e está ainda muito mais presente. Aliás, o exemplo familiar também vem de cima: uma fraternidade abençoada por um papai nada ficcional. Se houver alguma sobrinha, meu bom velhinho, deixe um livro de Paulo Freire, pois anda tão mal tratado por ignorantes que, imagine, querem cancelá-lo do imaginário pedagógico.
Sugestão: um livro de Paulo de presente de presente
Venha prevenido para surpresas, por favor, e não estranhe a ausência da árvore de Natal. Com as queimadas, ficamos temerosos que supusessem alguma que representasse afronta à vigilância. Também vamos prender os cachorros e esconder os gatos, pois na eventualidade de sua chegada, a memória dos animais queimados pode causar suspeita. Aviso: não venha de trenó puxado por renas, não venha, pois o ministro do meio ambiente pode não gostar, e, imagine o que faria… Ao sobrevoar os campos queimados, finja não ver os bois agora alçados à condição de bombeiros. Sim, a ministra da agricultura tem ensinado que eles comem as gramas excessivas, protegendo assim contra incêndios. Sábia, não?
Papai Noel, você, como eu e tantos outros queridos coetâneos, estamos no grupo de risco. Oscile com cuidado entre sua valentia e medo, mas se romper os circuitos da pós-modernidade e insistir em vir, traga uma senha. Será necessário ter certeza de que é quem é, pois em tempo de eleição antecipada – sim, já estamos em campanha para 2022 – é possível que o confundam com candidatos de esquerda, imagine chegando de vermelho… Além do mais, não estranhe se o chamarem de comunista, pois qualquer ser diferente do modelito é punido. Não sei se a vacina – qualquer uma delas, chinesa, britânica, brasileira – estará disponível. Caso não, sugiro não trazer cloroquina ou hidroxicloroquina porque o risco de ser assaltado é enorme. Mas venha, meu bom velhinho. Venha, para compensar as desgraças que vivemos. Venha sim, precisamos acreditar em você.