A casta militar se consolidou e se fortaleceu durante os 21 anos de ditadura, permaneceu intocada durante os governos tucano e petista, mas adquiriu consciência que, caso se mantenha alinhada ao bolsonarismo, não tem futuro no mundo ocidental civilizado
Bolsonaro fez um grande bem ao Brasil. Calma. Não me julgue pelas primeiras palavras. Continuo convencido que se trata de um governo genocida, etc e etc. Mas não me conformo com os lugares comuns de análises açodadas. Vou tentar explicar como consegui extrair algum suco dessa tragédia.
Nossa História é marcada pela presença marcante do Exército. Os militares, de maneira geral, são diretores, atores, personagens e também redatores dos roteiros do que foi e tem sido nossa caminhada. Alguns figurantes sobressaem pontualmente em importantes e marcantes passagens. Tanto como heróis quanto como vítimas.
A Guerra dos Farrapos, por exemplo, também conhecida como Revolução Farroupilha (1835 a 1845), foi uma tentativa de criar um país no Rio Grande do Sul, durante o Período Regencial. O então barão de Caxias, antes de massacrar os paraguaios, comandou a derrota dos farrapos. Até hoje é venerado pelo Exército brasileiro.
O mesmo também aconteceu com a Cabanagem, a Sabinada, a Balaiada até a Primeira República (1889-1930) comandada pelo marechal Deodoro da Fonseca que havia liderado o levante militar que derrubou a Monarquia. A República da Espada perdurou até Prudente de Moraes ser eleito em 1894.
- Único Duque do Império, Caxias comandou o Exército na Guerra do Paraguai
Na ocasião, o Exército estava dividido em duas correntes: Deodoro, um republicano pouco convicto que precisou ser convencido, e o positivista Floriano Peixoto, para quem a instituição devia garantir a existência da república e fomentar o desenvolvimento do país, principalmente com a industrialização, através de um governo centralizado.
O golpe de Estado que depôs o presidente Washington Luís, em outubro de 1930, foi articulado pelos estados de Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul e impediu a posse do presidente eleito Júlio Prestes, sob alegação de fraude eleitoral. Liderado por Getúlio Vargas que pôs fim à política café com leite, rodízio entre São Paulo e Minas Gerais no comando da república. A chefia militar coube ao tenente-coronel Góis Monteiro. Derrubado o governo de Washington Luís, Vargas assumiu o cargo de presidente provisório no mesmo ano. As mudanças políticas, sociais e econômicas que tiveram lugar na sociedade brasileira no pós-1930 fizeram com que esse movimento revolucionário fosse considerado o marco inicial da Segunda República no Brasil.
A vitória de 1930 foi possível graças a oposição da jovem oficialidade do Exército — os “tenentes” — ao sistema político que predominava na década de 1920. Os jovens oficiais promoveram as revoltas dos 18 do Forte em 1922, de São Paulo e Rio Grande do Sul em 1924, e na Coluna Prestes, de 1925 a 1927. Os “tenentes” expressavam também ideias de regeneração do sistema jurídico-político, atacavam as oligarquias, defendiam o equilíbrio entre os três poderes. O tenentismo pode ser entendido como uma tentativa de quebra da rígida estratificação hierárquica e de luta pela participação no sistema de poder.
Mas o “tenentismo” teria impedido uma intervenção maior do Exército nas decisões políticas, pelos menos até 1937. Getúlio assumiu o controle da nação com apoio do Exército e a condução dúbia durante a Segunda Guerra que propiciou a eleição do general Eurico Gaspar Dutra em 1945, que governou de 1946 a 1951. Nesse período, o PCB foi colocado na ilegalidade e o Brasil rompeu relações com a então União Soviética. Tempos da “guerra fria” e da submissão à política externa norte-americana.
De volta ao poder em 1951, Vargas atraiu uma plêiade de adversários, inclusive dentro das forças armadas, que exerceram tanta pressão que o conduziram ao suicídio em 1954, impedindo o golpe militar que estava armado. Essa desastrada iniciativa golpista favoreceu a eleição de Juscelino Kubitschek em 1955.
Movimento 11 de Novembro, general Teixeira Lott na posse de Nereu Ramos: garantiu a posse dos eleitos
Entre outubro de 1955 e janeiro de 1956, os militares antigetulistas, ligados à UDN, sofreram sérias derrotas. A primeira foi a eleição de JK com João Goulart como vice. A segunda, quando o Movimento do 11 de novembro, liderado pelo ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Lott garantiu as condições necessárias à posse dos eleitos. A terceira, quando os eleitos efetivamente foram empossados, em 31 de janeiro de 1956.
Na noite de 10 de fevereiro de 1956, oficiais da Aeronáutica insatisfeitos, liderados pelo major Haroldo Veloso e pelo capitão José Chaves Lameirão deram início a uma rebelião em Jacareacanga e Aragarças. Apesar de pequena monta, o governo encontrou dificuldades para reprimi-la devido à reação de oficiais, sobretudo da Aeronáutica, que se recusavam a participar da repressão aos rebelados. Todos os rebelados foram beneficiados pela “anistia ampla e irrestrita”, concedida logo depois pelo Congresso, por solicitação do próprio presidente JK.
Essas aventuras golpistas foram o fermento para golpe civil-militar de 1964, que revelou as divergências dentro das forças armadas. O golpe duraria apenas o tempo suficiente para promover eleições gerais sem a participação de “notórios comunistas”. Ledo engano! Mas o suficiente para impedir todas as tentativas de “golpes dentro do golpe”.
Durante esses 21 anos, os militares consolidaram uma verdadeira casta para controlar o País. Uma casta tão poderosa que impediu, durante os 8 anos do PSDB e dos 14 anos do PT na presidência qualquer alteração na formação militar, apesar da vigência da Constituição Cidadã de 1988. Formada por altos oficiais que são filhos, netos, bisnetos de militares de alta patente, essa casta continua determinando os rumos políticos do Brasil.
Voltando ao ponto de partida, o presidente Bolsonaro faz parte dessa história. Ele abriu a caixa de Pandora. Recordando, a lenda conta que o titã Prometeu presenteou os homens com o fogo para que dominassem a natureza. Zeus, chefe dos deuses do Olimpo, havia proibido a entrega desse dom à humanidade e arquitetou sua vingança criando Pandora, a primeira mulher. Antes de enviá-la à Terra, entregou-lhe uma caixa, recomendando que jamais fosse aberta porque dentro dela os deuses haviam colocado um arsenal de desgraças para o homem, como a discórdia, a guerra e todas as doenças do corpo e da mente. Mas havia um único dom: a esperança. Vencida pela curiosidade, Pandora acabou abrindo a caixa liberando todos os males no mundo, mas a fechou antes que a esperança pudesse sair.
A derrota de Trump interferiu diretamente nos projetos militares
Como Zeus, Bolsonaro nunca escondeu o que faria e fez na presidência. Até então camuflada, a extrema direita saiu à luz do sol. Os militares da ativa parecem assustados. Eles têm consciência do risco de se transformar em mais um pária no mundo ocidental. Empresários que sempre apoiaram aventuras golpistas, salvo raríssimas exceções, puxaram o freio de mão. A realidade se revelou e se impôs. Graças a Bolsonaro, Portanto, a política terá de descobrir e percorrer novos caminhos no Brasil real, até então camuflado.
A derrota de Trump acelerou o processo. As instituições democráticas se impuseram. Só Bolsonaro e os generais de pijama que o cercam ainda não se deram conta. A casta militar tem o que perder porque, para eles, não existe futuro fora do mundo civilizado.
Diante dessa realidade, os militares da ativa não deverão fazer qualquer movimento em defesa do capitão e sua família. Bolsonaro poderá (deverá) ser substituído e impedido de concorrer ao pleito de 2022. A nenhum desses protagonistas – exceto a minoria barulhenta que apoia incondicionalmente o presidente – interessa abrir as portas do inferno antes de salvar a esperança, a única arma que resta no jarro de Pandora.