Dia desses, um amigo de juventude, o Carlinhos, melancólico, reclamava numa lista de WhatsApp que, vindo da capital, tendo ido a um barzinho muito frequentado na cidade natal, voltou para a casa dos familiares sem sorriso satisfeito, sem emoções remoçadas e apertado pela lacônica saudade do que não reviveu. Foi uma notinha solta que ele postou, e que, aliás, não mereceu comentário algum. Eu anotei e no meu recôndito guardei para pensar. E foi assim que o inventei, na cidade por uns dias, buscando logo um espaço que a melhor ilusão recriara, um boteco conhecido como Bar do Barril do Zé Bigode, reduto de afetos trançados anos a fio por uma turma que insiste em ainda ser. Não encontrou ninguém da velha guarda e, por certo desapontado, apressou seus passos para casa de familiares, contando alguns vazios: desencontros amistosos, tempo desemedado, lapso das piadas picantes e das novidades presumidas, dos exageros libidinosos segredados, das indiscrições intimas de tantos.

Barril

Fachada do Barril, ponto obrigatório dos cultuadores de cerveja na terra de Lobato

          Em minha meditação sobre o caso do amigo revisitador, imaginei que seria uma sexta-feira, um fim de tarde preguiçoso, hora de encontros como nos tempos d’antanhos onde as vozes podiam sofrer modulações exageradas, sonar palavrões cabíveis, e até gestos inocentemente obscenos. No devaneio de minha constatação, também, por certo medi o caminho gorado do colega e supus que tenha apressado o passo para o aconchego da casa parental que, contudo, seria o avesso perfeito da farra doce dos que perderam há tempo seus 20, 30, 40 anos de convívio. No esforço de memória, comigo mesmo, pensando no camarada entristecido, cheguei a ouvir “conversa de botequim”, do insuperável Noel Rosa e até ressoou em meus ouvidos algumas notas da gravação do MPB4: “ô seu garçom faz o favor de me trazer depressa, uma boa média que não seja requentada”… Bastou isso para remontar a vivacidade dos festejos ordinários de encontros marcados pelos relógios de um passado que não merecia virar silente lembrança.

Ze e o peixe

Zé Bigode, proprietário do Barril, exibe um dos peixes capturado no Pantanal

          Pensando no amigo, viajei, fui longe como numa sequência de goles de cerveja gelada em dia de calor febril e energia extravagante. E me deixei embeber de saudade de um tempo em que se jogava conversa fora, comentava-se a gostosura das meninas, os carros novos dos ricaços, as manobras dos vereadores, as notas baixas na escola, os primeiros cigarros e a ousadia da ida a zona. E então o debate sobre o futebol era o limite da contenção. Falar alto não era desiquilíbrio, pelo contrário, era entusiasmo apenas contido pela proximidade de uma briga apartada pelos “deixa disto”… E como eram complexas as discussões sobre os jogos, pois ainda que houvesse prevalência de três ou quatro times alternados, presidia o clima de vingança abado por torcidas que vingavam derrotas passadas.

Pois é!… Fiquei pensando no meu amigo que “perdeu a viagem”. Será que ele voltou para a casa e exercitou a solidão dos que não conseguem mais ser o que foram? Ligou a televisão e se empenhou na NetFlix em alguns episódios como: “Narcos”, “Perdidos no Espaço”, ou, o que é pior, na série “Orange is New Black” que se arrasta desde 2013? Meu inquieto demônio inquisidor me cutucava com a maldita pergunta: o que mudou? Seria o preço dos produtos, a insegurança? Onde teria ido parar o grupo de amigos tão fieis? Sim tudo está tão caro, os custos são proibitivos e o medo de assaltos, roubos, estacionamentos, tudo dificultando tanto a soltura das nossas pressões temerosas, a cada dia mais internadas em nossas solidões. E como era bom sentar naquelas cadeiras de botequim. Todo mundo ia para se divertir, bater papo, ter conversa livre, dar risada. Hoje? Os botequins estão vazios, ou pelo menos cada vez menos frequentados. Tudo virou muito protocolar e as conversas são sempre sobre certezas, pontos de vista firmados, definidos. Não se discute, briga-se e o partidarismo não mais é para ser debatido e sim imposto. E não há como deixar de relacionar o esfriamento dos contatos de botequim com a intensificação das redes sociais. E todos querem resolver as crises políticas, falar de corrupção, evidenciar os mesmos ministros malditos.

Fabio, Luis e Cleber

Fabinho, Luís e Cléber, linha de frente de um serviço impecável

           Carlinhos, acho que tudo está ficando muito chato, e o civismo de botequim não satisfaz mais nada nem ninguém. Todo mundo anda mal-humorado, ranzinza mesmo, e a guerra entre coxinhas e mortadelas convidam à reclusão. Dói-me muito mesmo ter que dizer que sinto saudade dos resultados futebolísticos sempre contestados sobre este ou aquele jogo, sobre a moral da mãe do juiz ladrão, sobre detalhes da vida privada dos jogadores. E assim concluo que não é o preço da cerveja, a insegurança para chegar até o bar e nem a dificuldade de estacionamento. Está chato viver, perdemos a alegria do contato direto, envelhecemos nossas crenças… Sabe, Carlinhos, acho fizeram o Bigode do Bar do Zé Bigode…