Na longínqua manhã de 25 de março de 1957, caía uma chuva fina em Roma. No Palácio do Capitólio, ultimavam-se os preparativos para a cerimônia que daí a pouco teria lugar. No início da noite, uma pequena multidão, guarda-chuvas abertos, contida apenas por um discreto cordão de policiais, assistiria à chegada dos líderes dos Estados que subscreveriam o acordo prevendo uma redução progressiva dos impostos alfandegários. Surgia o Mercado Comum europeu entre Itália, França, República Federal da Alemanha, Luxemburgo, Holanda e Bélgica.  

Nasceu quase enjeitado, pois filho de um fracasso, o da formação de uma Comunidade Europeia de Defesa, um projeto ambicioso, com o objetivo declarado de superar conflitos nacionais que haviam suscitado duas guerras e devastado o continente – e o mundo – na primeira metade do século XX. Houve a ideia, então, de escolher caminhos mais prosaicos – identificar e aproximar interesses econômicos, promovê-los, até alcançar, num futuro indefinido, uma unidade política maior.

Foi um sucesso. Construiu-se um mercado de 200 milhões de habitantes. Em doze anos, entre 1958 e 1970, o comércio entre os países envolvidos multiplicou-se por seis vezes. Desenvolveram-se a indústria, a agricultura e o emprego, instaurando-se o Estado de Bem-Estar Social. As coisas iam tão bem que até os ingleses aderiram, em 1973. Eles passariam a conhecer, como disse Mark Rice-Oxley, em artigo divertido e amargo, os queijos franceses, o salame italiano, a cerveja belga e, coisa ainda mais incrível, que os alemães eram iguais a eles, que os   europeus eram normais. E isto os ajudaria a descobrir e a amar a Europa. Era um fenômeno geral. Em toda a parte, sobretudo entre os jovens, tomava corpo uma identidade europeia, afugentando os fantasmas dos nacionalismos mesquinhos e destrutivos.   

Nos anos 1980, os acordos de Schengen permitiram a livre circulação sobre as malditas fronteiras nacionais. Tornou-se doce exercício dormir em Amsterdam e acordar em Berlim ou em Roma, sem obrigação de mostrar documentos ou de ouvir o rosnado de policiais suspeitosos. Na década seguinte, o Tratado de Maastricht, em 7 de fevereiro de 1992, lançou as bases da união monetária e da moeda comum, o euro, introduzido em 2002 em substituição a 12 moedas nacionais.

Entretanto, já algo parecia não ir tão bem. Mudanças profundas e imprevistas alteraram as condições internacionais. A revolução informática transformou, radicalmente, os padrões existentes. Na Ásia, depois dos tigres, surgiram dois dragões – a China e a Índia – aumentando a concorrência. Seus produtos, mais baratos, inundaram os mercados.  A Alemanha unificada desequilibrara as relações de poder. A ampliação dos acordos econômicos e políticos, estendidos agora a 27 países, introduzira disparidades e complexidades não antevistas.  A isto somaram-se a crise imigratória, gravíssima a partir de 2015, com mais de um milhão de refugiados, e as ações terroristas, suscitando apreensão e medo.

Desde a criação da moeda comum, em 2002, e mesmo antes, articularam-se movimentos e vozes dissonantes. Denunciaram que, na Europa, como na fórmula de George Orwell, uns eram mais iguais que outros. Num quadro de altas taxas de desemprego, não mais absorvidas, mesmo em períodos de crescimento, cada vez mais curtos, as desigualdades aumentaram em vez de diminuir. Enquanto isto, os avanços do Estado de Bem-Estar social – transportes, saúde e educação – definharam.

A crise de 2008 foi reveladora. Provocada pela desregulamentação dos mercados financeiros, seus terríveis efeitos foram combatidos com a famosa “cura de austeridade”, ou seja, à custa das maiorias que vivem do trabalho assalariado. Paradoxalmente, ficaram ao abrigo da tormenta seus principais responsáveis, os capitais especulativos, gafanhotos predatórios, movimentados pelos grandes bancos, evadindo as fiscalizações, corrompendo os sistemas políticos, circulando livres pelos paraísos fiscais.

As gentes começaram a dizer não.

Por inconsequência das esquerdas, boa parte do sentimento de protesto, explorado pela extrema-direita, recolheu-se aos velhos nacionalismos, reacionários no sentido próprio do termo, aspirantes à reconstituição de um passado que passou, explorando nostalgias de flores murchas, incapazes de formular propostas de futuro.

Resta apostar nos novos movimentos e suas lideranças: Jesse Klever, da GroenLinks (a esquerda verde), na Holanda; Nicola Sturgeon, a corajosa primeira-ministra escocesa; o belga Paul Magnette; a dinamarquesa Margrethe Vestager; Benoît Hamon, líder socialista francês.

Eles não querem – e  não vão – renunciar à Europa. Mas pensam (re)construí-la de outra maneira: com democracia,  justiça social, respeito ao meio-ambiente e visão internacional. Eles representam um futuro em que se tornará cada vez possível – e desejável –  “amar a Europa”.    

 

Daniel Aarão Reis

Professor de História Contemporânea da UFF

Email: daniel.aaraoreis@gmail.com