José Carlos Sebe Bom Meihy
Ainda que muita gente reclame do Carnaval e que se diga que as manifestações se repetem a exaustão, que a falta de originalidade demanda rotina; ainda que se anuncie a morte do festejo e que se ergam vozes saudosistas dos “velhos carnavais”; ainda assim, o reinado de Momo está aí e se mostra firme e forte, crescendo em números de blocos e assustando detratores. Por certo, a dinâmica da festa negocia valores mutantes. Sim o carnaval evolui em termos de adaptações gerais. A eletrônica, por exemplo, afetou diretamente a qualidade do som e da iluminação favorecendo o espetáculo. Na mesma linha, tecidos, enfeites e adereços são beneficiados pelos avanços na produção de complementos que tornam a folia mais eficaz. Tais modificações, contudo, não interferem na essência da festa. Em contraste com esses toques modernizadores, persistem outros muito mais resistentes e que se reafirmam ano após ano. Note-se que o Carnaval de rua é muito mais maleável e aberto às mudanças e, assim, se mostra também mais resistente no que é essencial. Ainda que nas manifestações fechadas, em salões ou clubes, sempre mais controlados e sujeitos às regras, isso também ocorra, é no espaço popular que se notam as combinações.
Entre os elementos fixos, não negociáveis, da estrutura carnavalesca, sem dúvidas, a picardia se apresenta como fator notável. Sim, não se pode falar de carnaval sem malícia ou gozação. Desde os nomes dos blocos a irreverência se faz notar como por exemplo: Perereca sem dono; Sovaco de Cristo; Balança meu Catete; Rola preguiçosa; Pinto Sarado; Bigode esticado; É pequeno, mas não amolece; Se deixar eu boto; Vá tomar no Grajaú…, para citar alguns do mais de 500 só do Rio de Janeiro. Por certo a sexualização discursiva é dos artifícios mais usados, mas não é a única. Longe disso.
Exatamente pelas ‘licenças’, o Carnaval é tão engraçado e picante. Os defensores do ‘politicamente correto’ vivem às voltas com ‘correções’ e até broncas dirigidas às apologias das transgressões. Um dos casos mais expostos nessa linha de ataque são as figuras públicas. Este ano, o cardápio de achaques está bem farto e dentre tantas musiquinhas que passam pelo repertório crítico, uma tem chamado mais a atenção que outras. O bloco carioca ‘Ocupa o carnaval’, por exemplo, se vale da marchinha “Bandeira branca” para mandar seu recado “Bandeira branca, amor/ que o mundo cão/ Tem Trump, Temer/ Tem Crivella e tem Pezão/ Renan Calheiros senador/ Rodrigo MaLa igual ao pai? Nesse terror/ Aposentaram Satanás/ Aposentaram”.
A alegria do carnaval e a licença que liberta mágoas e desabafos é momentânea e até fugaz, mas isto não significa que é menos relevante. Pelo contrário, no circuito cíclico do calendário, a repetição permite a ideação de uma memória coletiva que se reabastece na sincronia da festa. Falar de memória coletiva implica muita coisa, e, no caso, vale como alerta para o comportamento político.
Sinceramente, vendo com a argúcia que me é possível, vislumbro uma certa tomada de posição de quantos se esforçaram por mudanças políticas que agora são vistas de outra forma. Pois é, no agito do festejo a menção à paz emblemada na Bandeira Branca significa sim um clamor de trégua, mas não perdoa os algozes da corrupção que continua por aí. E haja Trump, Temer, Crivella e Pezão.
Há mais um fator a ser considerado: o nome do bloco “Ocupa carnaval”. Bem sugestivo, o título do grupo replica na rua em festa a atitude política da prática das ocupações (de escolas, prédios públicos, entidades representantes do poder). Pensando nessas coisas todas, vale reafirmar a vivacidade carnavalesca e desejar a todos um bom período de festas… e de críticas ao quadro político que é mesmo uma piada.