Atena, a deusa das artes e do conhecimento, foi concebida pela união de Zeus com Métis que, temeroso do poderio da filha, engoliu a esposa

As novas agendas culturais enredam temas desafiantes. Um dos traços dessa postura remete ao lugar dos cidadãos nas respectivas malhas sociais. Referenciar posicionamentos em espaços devidos demanda discutir questões que trançam posturas “tradicionais” e conquistas juridicamente progressivas. Fala-se em redefinir situações que precisam ser refeitas para que a dinâmica histórica cumpra seu destino: um convívio humano mais justo porque pactuado. Parte-se, pois, do suposto que percebe na vivência social a orientação desejável para esquemas democráticos que estariam atentos ao dever de associar seus participantes, todos. Indistintamente.

Em meio às pautas favoráveis aos espaços dignos, destacam-se temas que cruzam questões de raças, classes, faixas etárias, credos, orientação sexual, características corporais. Os papeis de gênero, entre outros tópicos, se destacam fazendo emergir desafios que precisam ser redefinidos. O resultado que temos hoje é produto de construção cultural que remete às origens religiosas ou mitológicas, presentes em diversas matrizes. A distinção de gênero funciona como uma espécie de pecado original das culturas, e isto implica a retomada histórica como argumento capaz de explicar tensões que eclodem no que conhecemos como movimentos feministas e nas lutas pelos direitos humanos.

Desde a raiz, identificam-se condições excepcionais de algumas mulheres que, contudo, figuram como exceções: Afrodite, Gaia, Pandora, Hera, Diana, Pacha Mama, Rainha Zinga e tantas outras. Como deusas, tais entidades foram aproximadas da sabedoria, natureza, caça, amor e da origem da vida. Mas tudo muito alegórico, sem atingir o comum das pessoas. Lembremo-nos, por exemplo, que Atena, a deusa das artes e do conhecimento, foi concebida pela união de Zeus com Métis que, temeroso do poderio da filha, engoliu a esposa que, num jogo mágico, teria transformado a mulher grávida em mosca. Atena, portanto, nasceu da cabeça do pai, não do ventre da mãe.

Hegel foi o filósofo mais consequente

É provável que o primeiro movimento a reivindicar espaço para a condição feminina tenha sido delegado por Safo que, nascida em Lesbos, na antiguidade clássica, em 625 a.C., foi aproximada do lesbianismo e, assim, malvista. De toda forma, por essa iniciativa anunciava-se uma luta da mulher pelo controle de seu corpo. Desde a nascença do debate sobre governo houve reações subjetivas que determinavam o poder a partir do controle da mulher e da maternidade. Algumas linhagens de argumentos se expressaram, por exemplo, em atitudes como a de Pitágoras que via no feminino uma estirpe distinta do homem, pois elas teriam se originado nas trevas. Aristóteles reconhecia no masculino a atividade de poder e na mulher, passiva, a condição de recebedora do sémem apenas gestado no ventre materno.

E o debate cumulativo dos argumentos filosóficos progrediu com a qualificação do pensamento tomista que percebia alguma igualdade entre o masculino e feminino, mas apenas depois da morte. Em termos de definição filosófica, contudo, os grandes cortes temáticos ocorrem na modernidade, já com David Hume no texto “Sobre o amor e o casamento” e com Condorcet no ensaio “Sobre a admissão das mulheres ao direito de cidadania”. É importante dizer, ainda, que tais avanços não tenham sido lineares, posto que autores importantes na constituição do pensamento ocidental, viam a mulher de forma diminuída, como Kant no fundamental texto “Observações sobre o sentimento do belo e do sublime”, e, mais ainda, no contundente texto de Rousseau “Emílio ou a educação”.

Simone de Beauvoir, um dos símbolos da nova mulher

De todos os filósofos que alongaram a discussão sobre o papel do homem e da mulher, sob a ótica do poder, Hegel foi o mais consequente, pois metaforizou as diferenças entre macho e fêmea usando a imagem dos animais em oposição às plantas. O homem, pela postura altiva, forte, máscula, ágil, seria “animal”. A mulher, pela passividade e disposição mais estática, seria como “planta”, mais susceptível à sensibilidade. Entre um e outro, sob o olhar hegeliano, o vigor masculino capaz de governar, exigir, comandar. A mulher, sensível, seria sempre vítima do próprio temperamento materno e por isso comandante inviável. E foram precisos rios de tintas e muitos debates – além de dores e lutas cidadãs – para debelar subalternidades filtradas por preceitos religiosos, teorias “científicas”, preceitos de uma certa biologia/política discriminatória.

Não seria exagero dizer que vivemos novo tempo e muito se deve à nova mulher que renasce em obras libertadoras como as de Simone de Beauvoir, Hannah Arendt, Adelaide Carraro, Heloisa Teixeira. Vivemos, assim, um tema que sintetiza muito da questão nacional: o papel da mulher e a questão da regulamentação do aborto. Com a história na mão, independente de princípios morais, é de se perguntar se não é hora da mulher se pronunciar acima de dizeres masculinos. Em contraste, cabe perguntar aos homens, que por tantos séculos dominaram sociedades, se não seria tempo de reconhecer os novos tempos. Com a palavra, em primeiro lugar, as mulheres.