Eram três horas da madrugada de quinta-feira 21 quando a imponente estátua do sacerdote polonês Henryk Jankowski tombou no chão de uma praça central de Gdansk, com pedestal e tudo. Ela fora derrubada por três ativistas que tiveram o cuidado de acolchoar a queda espalhando pneus pelo chão — o ato não visava a destruir o monumento, e sim desconstruir “o falso e horrendo mito” do papel de Jankowski na vida nacional do país. A cidade amanheceu em choque: o trabalho de desconstrução do mito fora completado vestindo a estátua com roupas íntimas infantis e uma sobrepeliz de coroinha, branca, bordada.

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Ativistas derrubam estátua do sacerdote polonês Henryk Jankowski acusado de pedofilia

Poucas horas depois, a dois mil quilômetros dali, o Papa Francisco abria a cúpula da desonra da Igreja Católica, cujo encerramento está previsto para hoje.

A Polônia, como se sabe, é o país europeu mais ferozmente católico (85,8% da população), ultrapassando até mesmo a Itália. E Jankowski fora até recentemente figura de orgulho nacional por sua atuação no histórico movimento Solidariedade contra o regime comunista da época. Entre os tantos líderes mundiais que visitaram a igreja onde o clérigo atuou, contam-se o ex-presidente dos Estados Unidos George H.W. Bush e a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher. Foi nos anos 1990 que emergiram as primeiras investigações de abusos sexuais atribuídos a Jankowski. Permaneceram inconclusivas. Só mais recentemente o seu nome foi incluído na lista mundial de predadores sexuais aninhada em todos os escalões da Igreja. Tarde demais para um julgamento em Terra: o polonês morreu oito anos atrás. Mas suas vítimas vivem. Ou melhor, procuram sobreviver, reconstruir-se como adultos traídos pela sagrada Igreja e, se possível, sem perder a fé em Deus.

São imponentes as imagens dessa inédita cúpula, que reúne 190 autoridades do sacerdócio e 114 representantes de conferências episcopais para tratar de abuso sexual. Assim como a Rússia é craque em desfile militar, a Grã-Bretanha é imbatível em pompa e circunstância, e a França canta a “Marseillaise” e desfralda a bandeira bleublanc-rouge como ninguém, o Vaticano não decepciona quando o alto clero comparece em peso.

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Padre Nicola Corradi, em prisão domiciliar desde 2016 por abuso de crianças

À frente de um rebanho que o Anuário Pontifício estima em 1,299 bilhão de fiéis enquanto outras fontes trabalham com dado mais enxuto, o Papa abriu o encontro tarde demais para retificar uma biografia de resto animadora. Há seis anos na chefia da Santa Sé, Francisco não impediu que acusações e denúncias fossem se acumulando em patriarcados, arquidioceses, dioceses, missões, conventos, igrejas. Seu apelo de “Escutemos o grito das crianças clamando por justiça” e “O povo olha para nós e espera não condenações simples e óbvias , mas medidas concretas e eficazes” poderia ser dirigido a ele mesmo, que em tantas oportunidades não ouviu e não agiu.

Os avanços no combate à prática ou acobertamento eclesiástico de abusos sexuais devem-se muito mais à atuação da sociedade (incluindo-se aí a imprensa e a Justiça comum), e à dolorida persistência das vítimas, do que à ação da Igreja. “O inimigo está dentro”, apontou o Pontífice ao lançar um manual de 21 medidas para deter o abuso. Mas o inimigo sempre esteve dentro, e todos os presentes à cúpula sabem disso há tempos.

Da miríade de dados empilhados nos cinco continentes, alguns se sobressaem. Na Austrália, de 1980 a 2015, revela a agência Associated Press, 4.444 fiéis foram vítimas de predadores da Igreja em mais de mil instituições, com 7% do total de padres acusados de abusar de crianças. No Chile, país onde o Papa se negou a abrigar denúncias flagrantes no ano passado, estão em curso mais de cem investigações criminais contra clérigos. Na Alemanha, a Igreja concluiu que metade das 3.677 vítimas abusadas entre 1946 e 2014 tinham menos de 13 anos, 969 deles eram coroinhas, e um em cada seis casos envolveu estupro. Na Irlanda…, Estados Unidos…, Filipinas…, Senegal…, noviças abusadas… filhos gerados na vergonha de terem um pai sacerdote… a lista não para de crescer.

Dentro de algumas semanas, começará na Argentina, país natal do Papa, o julgamento de um dos casos mais cruéis envolvendo a Igreja: o do padre italiano Nicola Corradi, em prisão domiciliar desde 2016 por abuso de crianças internadas no instituto Antonio Próvolo para Surdos. Sim, crianças surdas. Levantamento aterrador de três repórteres do “Washington Post” publicado esta semana afirma que várias autoridades eclesiásticas, inclusive o Pontífice, foram alertadas repetidas vezes sobre a rede de predadores que atuava no instituto, com presas tão fáceis e indefesas. Abusos sexuais ocorrem a cada instante em todas as esferas — familiar, esportiva, corporativa, laica ou religiosa, militar ou civil. O que singulariza o escândalo na Igreja é a profundidade, extensão e persistência do acobertamento de padres por bispos, bispos por arcebispos, formando uma rede protetora que abriga o predador daqui, acolá. A Igreja teve três décadas desde as primeiras denúncias para salvaguardar as vítimas e a si mesma dessa falência. Não resta tanto tempo assim para Francisco injetar credibilidade ao exercício do sacerdócio.