Ministro do STF e presidente do TSE se excede ao defender o fim da Lava Jato e criticar aberta e injustamente a Procuradoria Geral da República; e de quebra, ajuda na compreensão da aberração jurídica que foi o rejulgamento do prefeito Ortiz Jr (PSDB) no final de 2016
Paulo de Tarso Venceslau
Desde pequeno ouvi dentro de casa: “quem fala o que quer, ouve o que não quer”. Em disputas domésticas, tudo bem. Mas é inconcebível tal fato acontecer entre as maiores autoridades do Poder Judiciário como o ministro Gilmar Mendes, membro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Rodrigo Janot, Procurador Geral da República (PGR).
A defesa dos investigados pela Operação Lava Jato, que chamava a atenção até dos mais incautos, passou dos limites na quarta-feira, 21, em reunião da Segunda Turma do STF. O troco foi dado pelo Procurador Geral da República (PRG), Rodrigo Janot.
Rodrigo Janot reagiu com um discurso duro, nesta quarta-feira (22), às acusações feitas ontem pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Em sessão no Supremo, Gilmar acusou a PGR de se julgar “acima da lei” e de “vazar” para a imprensa nomes de políticos que serão investigados na Operação Lava Jato.
“Decrepitude moral” e “ambição sem freios”
Na quarta-feira, 22, em evento da Escola Superior do Ministério Público da União, em comemoração aos três anos da Lava Jato, Janot classificou como mentira que beira a irresponsabilidade a informação reproduzida por Gilmar Mendes de que a PGR teria feito “coletiva em off” para repassar nomes da lista da Odebrecht para jornalistas, conforme declarou o ministro.
Mesmo sem citar nomes, mandou recado direto ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ao afirmar que a inverdade veiculada por Mendes só pode vir de “mentes ociosas e dadas a devaneios” e ao “servilismo”. “Procuramos nos distanciar dos banquetes palacianos. Fugimos dos círculos de comensais que cortejam desavergonhadamente o poder político. E repudiamos a relação promíscua com a imprensa”, declarou Janot.
E para não deixar dúvidas acrescentou: “Ainda assim, meus amigos, em projeção mental, alguns tentam nivelar a todos à sua decrepitude moral, e para isso acusam-nos de condutas que lhes são próprias, socorrendo-se não raras vezes da aparente intangibilidade proporcionada pela posição que ocupam no Estado”.
O estopim teria sido as reuniões formais e informais na semana passada entre Gilmar Mendes com o presidente Michel Temer e os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), para tratar, segundo eles, da reforma política. Um dos encontros se deu em jantar promovido por Gilmar Mendes em sua residência em homenagem ao senador José Serra (PSDB-SP), que fazia aniversário naquele dia.
As manifestações de Mendes no início da sessão da Segunda Turma do STF da qual é presidente e na presença do relator da Lava Jato naquela suprema corte, ministro Edson Fachin teriam sido a gota d’água.
Mais lenha na fogueira
O Estadão de quarta-feira, 22, estampa como manchete na primeira página: “Gilmar acusa PGR de crimes e defende anulação de delações”. Na reportagem consta que Mendes acusou a PGR de divulgar de forma indevida informações de processos sigilosos, como da Lava Jato e ao mesmo tempo defendeu a anulação de depoimentos de delação premiada divulgados pela imprensa.
Mendes também afirma ver “crime de responsabilidade” ao criticar a “espetacularização” que teria marcado a forma de divulgação da Polícia Federal na Operação Carne Fraca, que investiga esquema de pagamento de propina de fiscais.
O conflito está armado. (Leia no final a íntegra do discurso de Janot)
Ministro Gilmar Mendes
Cai a máscara de Gilmar Mendes
O embate entre Mendes e Janot ajuda, na opinião deste escriba, a entender a matéria veiculada ontem pelo CONTATO “TSE publica acórdão do “rejulgamento” de Ortiz Júnior”.
A redação final do acórdão é de autoria de Gilmar Mendes, exatamente o responsável por aquela aberração jurídica. Mesmo utilizando de piruetas interpretativas dos fatos, Mendes reconhece que “Conquanto o acórdão embargado revele prova de possível improbidade administrativa ou, quem sabe, até de ilícitos penais, não há mínima indicação no acórdão, seja de prova documental, seja de prova testemunhal, de que os valores desviados de licitações foram efetivamente utilizados na campanha de 2012.
A prova testemunhal apenas indica que o percentual de 5% das licitações seria destinado para a campanha eleitoral do embargante, mas o acórdão embargado não demonstra, com a clareza necessária, que aqueles valores foram realmente derramados no pleito eleitoral, presumindo a utilização, o que, obviamente, não se coaduna com o devido processo legal, mormente em se tratando de um tema tão caro à nossa Democracia: a soberania popular”.
Ao mesmo tempo, Mendes omite todas as provas e argumentos fartamente utilizados pelo relator, ministro Herman Benjamin. E absolve Ortiz Júnior.
Ministro Herman Benjamin, do TSE, relator da Lava Jato
Curiosamente, muitos cidadãos que se mostram chocados com o comportamento de Gilmar Mendes diante da Operação Lava Jato, da sua defesa explícita de investigados e de suas acusações à Procuradoria Geral da República (PGR) e à Polícia Federal (PF), calam-se diante da aberração jurídica que foi o “rejulgamento” do prefeito Ortiz Jr.
Mais curioso ainda é a constatação que os dois episódios foram protagonizados pelo ministro Gilmar Mendes, que traz como escudeiro um ex-petista que faz tudo o que seu mestre mandar.
Prefeito Ortiz Jr (PSDB) considera que foi um milagre sua absolvição
Íntegra do discurso de Janot em resposta a Gilmar Mendes:
“Colegas,
A Lava Jato completou neste mês de março três anos de profícuos trabalhos. Do que se revelou no curso das investigações, é possível concluir que existem basicamente duas formas de corrupção no país: a econômica e a política. Elas não se excluem e, em certa medida, tocam-se e interagem.
A primeira, sempre combatida e bem conhecida do Ministério Público, tem fundamentalmente uma finalidade financeira: o corrupto busca o enriquecimento com a venda de facilidades. Normalmente, esse tipo de corrupção encontra-se em profusão nas camadas inferiores da estrutura burocrática do Estado.
A segunda, até então mais intuída do que propriamente conhecida, é ambiciosa e mais lesiva. O proveito econômico não está na sua alçada principal, mas antes o poder. Enriquecer pela corrupção política é mais uma consequência do que propriamente um objetivo. Busca-se o poder, porque o dinheiro e suas facilidades chegam de arrasto.
O mérito da Lava Jato foi haver encontrado o veio principal da corrupção política. Esse tipo de corrupção, como disse, é de altíssima lesividade social porque frauda a democracia representativa, movimenta bilhões de reais na clandestinidade e debilita o senso de solidariedade e de coesão, essenciais a uma sociedade saudável.
Escolhas para altos postos na estrutura do Estado, nas suas autarquias e empresas passam a não considerar a competência técnica do candidato, mas sua disposição para trabalhar na engrenagem arrecadadora de recursos espúrios destinados à máquina partidária que o apadrinhou.
Desde o mensalão, essa realidade já começava a revelar seus contornos com mais nitidez. No entanto, foi nesses últimos três anos que a dura e inocultável verdade se mostrou por completo: nosso sistema político-partidário foi conspurcado e precisa urgentemente de reformas. É necessário abrir espaço para a renovação o quanto antes, pois a política não pode continuar a ser uma custosa atividade de risco propícia para aventureiros sem escrúpulos.
Certamente, essa crise política há de encontrar o devido equacionamento no âmbito do próprio sistema democrático. Serão as forças políticas da sociedade, dentro da institucionalidade, que, após debate e reflexão, devem apontar caminhos para que levem à quebra do círculo vicioso em que o país se encontra.
A nós do Ministério Público cabe um papel modesto nesse processo, mas de grande relevância social. Devemos dar combate, sem tréguas, ao crime, à corrupção e às tentativas de fraudar-se a lisura do processo eleitoral.
É nesse contexto que o papel dos senhores, Procuradores Regionais Eleitorais, avulta em importância institucional. Muitos dos desvios do poder político podem e devem ser prevenidos e reprimidos, quando for o caso, já no processo eleitoral.
Precisamos intensificar, assim, a fiscalização do financiamento das campanhas, combater firmemente o caixa 2 e promover obstinadamente a responsabilização de quem não respeita o fairplay do jogo democrático e abusa do poder econômico e político para vencer ilegitimamente eleições.
O filtro do processo eleitoral, do qual o Ministério Público é importante componente, é fundamental para melhorar a qualidade de nossa política.
Não é fácil a nossa missão, bem o sei. Para mim, já se vão 32 anos de árdua labuta nesta Casa. Tenho afirmado reiteradamente que o Ministério Público não engana a ninguém e não costuma vender ilusões ou fantasias. Quem busca atalhos e facilidades, de fato, não terá aqui o melhor lugar para encontrá-los.
Digo isso porque, mesmo quando exercemos nossas funções dentro da mais absoluta legalidade, estamos sujeitos a severas e, muitas vezes, injustas críticas de quem teve interesses contrariados por nossas ações. A maledicência e a má-fé são verdugos constantes e insolentes.
Não quero deter-me no fato específico, mas não posso deixar de repudiar com toda veemência a aleivosia que tem sido disseminada para o público nos últimos dias: é uma mentira, que beira a irresponsabilidade, afirmar que realizamos, na Procuradoria-Geral da República, coletiva de imprensa para “vazar” nomes da Odebrecht.
Só posso atribuir tal ideia a mentes ociosas e dadas a devaneios, mas, infelizmente, com meios para distorcer fatos e desvirtuar instrumentos legítimos de comunicação institucional. Refutei pessoalmente o fato para os próprios representantes do veículo de comunicação que publicou a matéria inverídica.
Procuramos nos distanciar dos banquetes palacianos. Fugimos dos círculos de comensais que cortejam desavergonhadamente o poder político. E repudiamos a relação promíscua com a imprensa.
Ainda assim, meus amigos, em projeção mental, alguns tentam nivelar a todos à sua decrepitude moral, e para isso acusam-nos de condutas que lhes são próprias, socorrendo-se não raras vezes da aparente intangibilidade proporcionada pela posição que ocupam no Estado.
Infelizmente, precisamos reconhecer que sempre houve, na história da humanidade, homens dispostos a sacrificar seus compromissos éticos no altar da vaidade desmedida e da ambição sem freios.
Esses não hesitam em violar o dever de imparcialidade ou em macular o decoro do cargo que exercem; na sofreguidão por reconhecimento e afago dos poderosos de plantão, perdem o referencial de decência e de retidão.
Não se impressionem com a importância que parecem transitoriamente ostentar. No fundo, são apenas difamadores e para eles, ouvidos moucos é o que cabe e, no limite, a lei. Não somos um deles, e isso já nos basta.
Para encerrar, compartilho com os senhores a advertência do mestre Montesquieu que sempre tive presente comigo: “o homem público deve buscar sempre a aprovação, mas nunca o aplauso. E, se o busca, espera-se, ao menos, que seja pelo cumprimento do seu dever para com as leis; jamais por servilismo ou compadrio”.