CoRAGGIo! Em italiano, coragem! Foi com este lema, misturando-o com o próprio sobrenome, que Virginia Raggi elegeu-se prefeita de Roma em 19 de junho passado, com cerca de 67% dos sufrágios, uma notícia que merecera mais destaque e análise.

Com efeito, embora fundada há mais de dois mil e setecentos anos, a cidade nunca foi governada  por alguém do sexo feminino. Narra a lenda, porém, que, nas origens, uma loba salvou a vida de Remo e do  irmão,  Rômulo,  fundador e primeiro rei da chamada Cidade Eterna. A escultura da loba dando de mamar a dois meninos imortalizou a narrativa mítica e suscitou outras versões que associaram o uso do nome – lupa, em latim – à forma como eram chamadas as prostitutas. Assim, graças aos bons ofícios de uma mulher, salvou-se o primeiro governante da cidade.  Os romanos, porém, como bons seres  humanos,  foram ingratos e só agora,  muitos séculos  depois, é que resolveram entregar o leme da cidade a uma  representante da segunda metade do céu.

 

Virginia Raggi

Virginia Raggi

 

Virginia Raggi,  jovem advogada, 37 anos, solteira, mãe de um filho de 7 anos,  iniciada há pouco nas lides políticas, vai precisar mesmo de coragem para vencer os desafios que terá pela frente.

O primeiro deles foi enfrentar a tradição machista, entranhada nos costumes. Silvio Berlusconi, conhecido líder das direitas, não se permitiu afirmar que a maternidade era incompatível com a atividade política? Ao votar na nova prefeita, os romanos rejeitaram o preconceito, mas estão longe de tê-lo superado, pois, no que diz respeito à presença das mulheres na Política, a Itália, entre 193 países, ocupa uma modesta 42a posição.

A nova prefeita quer conferir transparência ao governo e garantir honestidade na administração dos dinheiros públicos. Não será pouco: em fins de 2015, o escândalo da Máfia Capital, envolvendo  políticos de diferentes partidos – de direita e de esquerda – reforçou o descrédito que os romanos votam há anos à política e aos políticos. Não por acaso, nas últimas eleições municipais, a abstenção chegou perto de metade do eleitorado. Na capital, apesar dos debates aquecidos, e da polarização do segundo turno, só pouco mais de 60% dos eleitores foram às urnas.

Outro desafio é contrariar os poderosos interesses econômicos. Renegociar a dívida da Administração Municipal com os bancos, de quase 13 bilhões de euros, e abolir as abusivas isenções de impostos de que desfrutam os estabelecimentos comerciais do Vaticano. Com estas e outras medidas, entre as quais o combate à corrupção, seria possível recuperar as finanças e dar conta de problemas locais que se tornaram estruturais e exasperantes ao longo do tempo.

Como o caótico trânsito. Com 3 milhões de habitantes, 70 carros para cada 100 habitantes, e perto de 700 mil “duas rodas” motorizadas (motocicletas, lambretas e assemelhados), haverá que formular novas concepções de cidade e de mobilidade urbana,  que privilegiem as ciclovias e o transporte coletivo – uma terceira linha do metrô local, cujo término fora previsto para o começo deste novo século,  ainda está em construção… Além disso, será necessário negociar com a corporação de funcionários da prefeitura, responsáveis pelo precário  transporte público e afeitos a greves periódicas e remuneradas.

Um outro aspecto diz respeito à organização eficaz da coleta do lixo, eliminando uma sujeira que compromete as condições de saúde, o bom gosto  e o senso estético dos romanos e dos milhões de visitantes que a cidade acolhe.

 

Cinco estrelas

Cinco Estrelas

 

A nova loba de Roma pertence aos quadros do Movimento Cinco Estrelas, partido alternativo que, desde 2009, quando apareceu, subverte a atmosfera política italiana e questiona as hegemonias consagradas. As direitas e os fascistas não confiam nele.  As esquerdas tradicionais o acusam de “fazer o jogo das direitas”. Grandes interesses econômicos o caracterizam como “populista”.  Mas muitos partidários das esquerdas alternativas, não apenas ingressaram no Cinco Estrelas, como votam preferencialmente em seus candidatos.

 

Ada Colau

Ada Colau

 

Na Europa atual a díade direita-esquerda, embora ainda válida,  já não é mais uma chave que abre todas as portas do conhecimento político.  Mesmo agora, no plebiscito que agitou a Inglaterra, pessoas de direita e de esquerda votaram a favor e contra o “Brexit”. O mesmo acontece na Itália, onde subsistem ambivalências e ambiguidades. Virginia Raggi terá de lidar com elas. Em certa medida, é expressão delas e sobre elas deverá definir-se. Mas não deixa de ser estimulante que “candidatas alternativas”, como Ada Colau, em Barcelona; Manuela Carmena, em Madrid e, na própria Itália, Chiara Appendino, em Turim, também do 5 Estrelas, estejam ganhando eleições com propósitos críticos ao “sistema”.

 

Manuela Carmena

Manuela Carmena

 

Como avisavam os antigos: caveant consules! Ou, traduzindo-se livremente a advertência : que se cuidem as elites tradicionais, de direita e de esquerda!

 

Chiara Appendino

Chiara Appendino

 

por Daniel Aarão Reis | Professor de História Contemporânea da UFF |  daniel.aaraoreis@gmail.com