Como as artes ajudam! Sempre. Salvam-nos pelo reencantamento do mundo, pela alternativa ao real, pela beleza sensibilizada. Vale perguntar o que seria de nosso agora sem o convívio com a com a música, filmes, novelas, leituras, pequenos clips que sejam. Não sou exatamente do tipo que relativiza tudo e se vale da lenga do copo meio cheio, meio vazio. Não mesmo. A carapuça de pessimista veste bem minha personalidade que, aliás, só não me envenena graças às catarses permitidas por devaneios estimulados. E choro pelo negacionismo que tudo anula, despreza, desalenta. E domestico a grandiosidade do perigo anunciado pela política aprendendo a esperar. Mas não é alheamento passivo. É aguardo instruído. Poetado.
Em meio a um tecido de lamúrias contidas, um escrito de Fernando Pessoa soou-me como pretexto. O mais amado dos poetas portugueses contemporâneos, quase sempre evocado pelo seu lado mais tangível, acabou por provocar em mim um alívio filosófico motivador de certa alienação do bem. Dono de heterônimos (21, 72, 127?) ele abrigou um sem-número de outros “eus” guardados pelo denominador comum contido no “poeta fingidor”. Nas delícias de rimas enigmáticas, porém, esquecemo-nos de uma de suas dimensões mais lustrosas, estas sim, donas de dificuldades provocantes. Falo especificamente de um dos conjuntos mais inquietos da poética ocidental, exatamente do “Livro do desassossego”.
Ah, o “Livro do desassossego”!… Lembremos, são 500 entradas não dispostas em ordem sequente e que, fragmentadas, oferecem uma articulação exigente da organização interpretativa do leitor. Foi pensando nestes cacos soltos que fiz uma ligação pessoal e oportuna. Creio que a primeira informação que desafiou essa minha travessia, quando ainda menino, foi causada pela prática que exercitou escrevendo cartas para si mesmo. Outro lance que me fisgou foi a dimensão da frase de Plutarco “navegar é preciso, viver não é preciso”. Guardo bem a sensação desconfortável sobre incerteza do verbo “precisar”: precisar como necessidade; precisar como exatidão. Desde então aprendi a navegar no mar Pessoa exatamente sem exatidões.
É claro que da coleção de detalhes intrigantes, minha leitura desnorteada não poderia deixar o registro da demora da colocação pública do tal “Livro do desassossego”. Morto em 1935, apenas em 1962 alguns fragmentos foram lançados, sendo que se esperou até 1982 por uma edição integral. E como as entradas, como se diário fossem, são desconcertantes. Confesso que fiz uma pequena lista de ligações, mas me detive em um quesito que se ajusta perfeitamente ao meu ânimo atual. Reuni duas passagens que falam contra ativismos desesperados. A primeira delas leva o título de “Maneira de bem sonhar” e aconselha:
Adia tudo. Nunca se deve fazer hoje o que se pode deixar de fazer também amanhã.
Nem mesmo é necessário que se faça qualquer coisa, amanhã ou hoje. Nunca penses no que vais fazer. Não o faças. Vive a tua vida. Não sejas vivido por ela. Na verdade, e no erro, no gozo e no mal-estar, sê o teu próprio ser. Só poderás fazer isso sonhando porque a tua vida real, a tua vida humana é aquela que não é tua, mas dos outros… Despreza tudo, mas de modo que o desprezar te não incomode. Não te julgues superior ao desprezares. A arte do desprezo nobre está nisso.
São vários Fernando Pessoa
Em outra passagem intitulada “A inacção consola de tudo” Pessoa completa a mensagem anterior e prossegue a lição:
Não agir dá-nos tudo. Imaginar é tudo, desde que não tenda para agir. Ninguém pode ser rei do mundo senão em sonho. E cada um de nós, se deveras se conhece, quer ser rei do mundo. Não ser, pensando, é o trono. Não querer, desejando, é a coroa. Temos o que abdicamos, porque o conservamos, sonhando, intacto eternamente à luz do sol que não há, ou da lua que não pode haver.
Pois é, comecei falando da beleza da arte como válvula de tantas incertezas e crueldades que nos são cenários. Aconteceu de, pela poesia, pelas mãos de Pessoa, ler que devo adiar o meu desespero mutante do presente. O poeta mandou esperar. Resta obedecer. Deixemos para amanhã o que fatalmente vai acontecer. Vivamos a tal alienação do bem. Vivamos lendo desassossegadamente…