Nos cemitérios há um silêncio singular que os mais crédulos até podem atestar com as vozes dos que se foram
Sim, o mundo mudou muito. E não só pela crise climática, pelo avanço frenético da tecnologia ou pelas novas dinâmicas nas relações interpessoais. Refleti sobre isso ao pensar nas formas de celebrar o “Dia dos Mortos” e percebi como mudamos até nas palavras: “mortos” virou “finados” e, mais recentemente, apenas “feriado”. De forma discreta, quase sorrateira, o passado me tomou com lembranças de outras eras — um tempo em que a família, dispersa por várias cidades, se reunia na casa de minha avó e, de lá, como em procissão, caminhávamos até o cemitério.
Havia muito preparo. Antes, lavava-se o túmulo; no dia, levávamos flores, acendíamos velas e fazíamos orações. Eu nunca entendi bem o motivo de tudo isso. Afinal, o que os mortos poderiam fazer com aquelas flores e velas? E por que tanta oração? Vovó, sábia, explicava que as flores não eram para os mortos, mas para nós, os vivos. “É para manter a memória deles”, dizia com carinho. O tempo passou e, imagino, hoje minha avó zelosa também espera por esse ritual sagrado. Presumo, contudo, que tenha suas decepções. Nada é como antes…
Ainda assim, para mim, o Dia dos Mortos traz recordações intensas, e minha memória revive rostos que marcaram minha vida. A data, sob essa perspectiva, traz um misto de saudade e conforto. Para quem já viveu bastante, como eu, a nostalgia é uma companheira constante, mas no Dia dos Mortos ganha um sentido especial. Parece que, neste dia específico, os que partiram se fazem mais presentes, como se viessem nos visitar.
Já me despedi de muitos: meu grande amor, amigos de infância, parentes queridos. A vida vai somando essas ausências. Alguns dizem que o tempo cura tudo, mas eu acredito que ele apenas nos ensina a conviver com as cicatrizes. É como se nossas memórias fossem peças de um museu que visitamos uma vez por ano. Mesmo com o passar do tempo, há ainda uma beleza melancólica nos cemitérios, um silêncio singular entre túmulos que os mais crédulos até podem atestar com as vozes dos que se foram. Nos murmúrios dessas lembranças, sorrisos presos se libertam, e até velhas desavenças ganham novos contornos. Nesses momentos, sinto-me cercado por uma multidão invisível, composta por todos que amei e que se desprenderam do tempo infinito.
No México se comemora com muita música e pratos típicos
O Dia dos Mortos parece ser, de certa forma, um período em que as fronteiras entre este mundo e o outro se afrouxam um pouco. Talvez por isso, no México, as pessoas celebrem com tanta vitalidade, montando altares decorados com flores de cempasúchil, música e pratos típicos. Aqui no Brasil, a tradição sempre foi mais discreta, mas não menos significativa. Não há banquetes, mas há visitas.
A modernização trouxe transformações fatais. Para envelhecidos como eu, ir aos cemitérios tornou-se um programa difícil. A distância imposta por mudanças, a idade avançada e as emoções à flor da pele tornaram essa ida mais um fardo do que um consolo. Mas isso não é tudo. Na solitude do meu lar, criei meu próprio ritual: enfeito a casa com flores, acendo uma vela no parapeito da janela e desde o amanhecer busco o silêncio. A flor é sempre uma rosa amarela, como minha amada gostava, um tributo às velhas manias que cultivávamos.
Os jovens de hoje — eu até entendo — às vezes olham para essas reverências como uma tradição ultrapassada, algo que não combina com o ritmo acelerado dos tempos modernos. Eu, porém, vejo nisso uma chance de lembrar que a vida é breve e que o tempo é implacável. A morte é a única certeza que temos, mas isso não significa que seja o fim. Enquanto lembramos de alguém, essa pessoa continua, de algum modo, a existir, seja em nossas memórias, seja em nossos gestos.
Então, aqui estou eu, velho e refletindo sobre o tempo que passou e o que me resta. Em êxtase sereno, sinto-me cercado por uma companhia invisível, uma legião de fantasmas amorosos que me acompanham desde os tempos de menino. E, por um instante, sinto que a distância entre o agora e o eterno não é tão grande assim. Hoje, os mortos não estão tão longe, e a voz de minha avó reacende em mim o verdadeiro sentido da celebração da vida.