Quem me apresentou o Baixo foi a Baixinha. Era engraçado ver Elis Regina, tão pequenininha, chamar Fernando Faro de Baixo. Mas soava normal. Afinal, era assim que só os amigos mais próximos o conheciam, enquanto os desconhecidos o chamavam de Faro e os conhecidos de Fernando. Baixo era para uns poucos eleitos.
Só fiquei sabendo que seu nome completo era Fernando Abílio de Faro Santos agora, quando li seu perfil na Wikipedia, depois que soube que ele nos havia deixado (no domingo 24). Perdi a oportunidade de chamá-lo de Abílio dos Santos.
O Baixo não perdia o amigo por causa de uma piada, nem a piada por causa de um amigo. Nasceu em Aracaju e eu brincava com ele dizendo que Elói, baiano de Monte Santo do sertão de Canudos e vaqueiro de meu avô materno, em cuja casa nasci, dizia que sergipano era tudo ladrão de cavalo. Ele ria de perder o fôlego quando eu lembrava o causo do encourado. E adorava ouvir causos. Não se magoou nem quando o alcunharam de “diretor feijoada”, só porque ele cortava a imagem dos artistas que protagonizavam sua série antológica Ensaio, na TV Cultura de São Paulo, em pequenos detalhes: o nariz, a orelha, o olho brilhando. “Vamos por partes, como dizia Jack, o estripador”, escrevi uma vez ao elogiar um programa dele numa crítica de televisão no Estadão.
Faro nem ligava para minhas tiradas irreverentes, pois sabia que eu sabia que ele era bom mesmo era no todo, não nas partes. Conhecia de cor e salteado tudo o que fazia, tinha uma sensibilidade demoníaca para entrar pelo artista adentro e trazer para fora de qualquer um, o melhor que nele havia. Assim foi com Elis, que o amava como parceiro de fé e o venerava como se fosse o mais amado dos pais que ela andou buscando na vida. Ou com Jackson do Pandeiro, cuja genialidade rítmica saltava aos olhos do telespectador quando era dirigido por ele.
Dirigindo, tinha o olho sensível para a imagem a registrar e a mão certeira na mesa de corte. Seu estilo minimalista convocava o telespectador a escutar e era só o que lhe interessava. Sempre. Cultivei sua amizade a ponto de ele me levar para o sagrado recinto da mesa de corte na TV Tupi na noite em que trouxe para o Sumaré Caetano Veloso, vindo do exílio londrino só para se encontrar com Gal Costa e João Gilberto.
Vê-lo dando ordens aos cameramen e editando o programa fez com que eu entendesse que a arte dele não tinha nada que ver com aquela técnica toda, que era só aparente. O negócio do cara era o profundo da alma humana. Deu-me a honra de me introduzir à mesa de sua família, à qual me integrei com as bênçãos de Iarinha, menina pequena e linda até hoje, que ele cativou para se casar e com ela ter a filha Zu, que lhe deu netos com meu amigo de mais tempo ainda, Juca de Oliveira. No lar ele se enfronhava como um menino traquinas, sem produzir nem dirigir, apenas se deixando levar.
Foi-se embora hoje cedo sem me avisar que ia, deixando-me a impressão de que nunca cresceu para nunca deixar de ser criança. Elis Regina e Jackson do Pandeiro devem ter reivindicado de Nosso Senhor a presença do cara que tinha vocação de ladrão de cavalo, mas terminou furtando joias raras musicais para distribuir a um público saturado de violência, vileza, estrondos e pneus cantados na programação nossa de cada dia, cada vez mais estúpida, cada vez menos Faro, que era só sabedoria e sensibilidade.
José Nêumanne Pinto, jornalista, poeta e escritor
Acesse o Blog do Nêumanne