Foi com certo pesar que ouvi críticas contra a celebração do Dia da Consciência Negra. Surpreendi-me ainda mais ao perceber que o protesto vinha de alguém que, a princípio, eu considerava esclarecido — uma pessoa que imaginei capaz de compreender o significado do 20 de novembro, dia que homenageia Zumbi dos Palmares e representa a luta pela dignidade e igualdade para a comunidade negra no Brasil. Não contive minha indignação e respondi como quem acredita firmemente que as causas identitárias são parte do caminho para uma sociedade mais justa e democrática. Sim, estou ao lado de quem respeita as diferenças e reconhece, na história, o valor fundamental da negritude brasileira. E não tenho como negar que sim, somos um país racista, ainda que nos percamos nas sutilezas de uma tropicalidade fantasiosa.
Desde menino, cresci ouvindo que o Brasil era um país exemplo, onde diferentes “raças” conviviam harmoniosamente. Essa imagem parecia um consenso: o “país mestiço” que encontrou sua paz em meio às diferenças, como se tivéssemos resolvido as questões raciais por uma convivência pacífica quase natural. Na escola e nas conversas de família, aprendemos cedo sobre essa narrativa. Mesmo sendo filho de imigrantes, não me era dado pensar no trabalho compulsório dos ex escravizados como algo exótico. Mas, com o tempo, fui compreendendo as armadilhas do mito da “democracia racial”, atribuído a Gilberto Freyre, que, embora tenha valorizado a mistura, também disfarçava desigualdades e injustiças persistentes. Aceitei as relações sociais que via ao meu redor e, por vezes, me escapava a percepção de que, no conforto da palavra “tolerância”, podia haver embutida uma crueldade sutil. O que eu via como tolerância, muitos poderiam sentir como uma aceitação autoritária, que obscurecia a realidade de exclusão e resistência do povo negro. E, num desses momentos de reflexão, me perguntei: e se eu fosse negro?
Para Gilberto Freyre, o Brasil seria a “mais avançada democracia racial do mundo”
Se, em vez de branco, eu tivesse nascido negro, viveria desde cedo o peso de ser constantemente visto como um “outro”, alguém que deveria se ajustar a padrões que não foram pensados para inclui-lo. A cor da minha pele deixaria de ser apenas uma característica: ela se tornaria um símbolo e, em alguns contextos, um fardo. Desde jovem, eu saberia que minha pele me colocaria numa posição de resistência e, ao mesmo tempo, de vulnerabilidade. Saber que minha identidade, marcada por uma história que não escolhi, poderia ser usada para me limitar e categorizar seria uma lição dura e constante.
Se eu fosse negro, talvez precisasse estar atento a cada movimento, sabendo que poderia ser interpretado através de estereótipos construídos por uma sociedade que ainda insiste em ver o negro como subalterno. Passaria a vida sob olhares que, muitas vezes, perpetuam um sistema que oprime e distorce tudo o que não corresponde ao padrão hegemônico, eurocêntrico. E, desde muito cedo, eu saberia que até as situações mais cotidianas — caminhar pela rua, sentar-se em um restaurante ou ser abordado por uma autoridade — poderiam ganhar interpretações que, para muitos, seriam impensáveis.
Mas sendo branco, reconheço que minha posição traz responsabilidades. Atravesso a vida sem pensar na cor da minha pele ao sair de casa ou ao ocupar um espaço público. Esse privilégio, essa liberdade de transitar sem ser questionado por minha aparência, me faz ver o quanto sou beneficiado por uma estrutura que ainda distribui oportunidades de maneira desigual. Tomar consciência desses privilégios é desconfortável, mas necessário.
Desejo, então, que o Dia da Consciência Negra não seja apenas um momento de celebração para a comunidade negra, mas também um chamado à reflexão para aqueles que, como eu, compõem a branquitude e se sentem ao menos inquietos com o estado de coisas. Que possamos fazer desse dia uma data de compromisso, uma oportunidade de reconhecer nosso papel na transformação da sociedade. Saudando a negritude, reconheço também que minha própria identidade precisa ser revisitada. A branquitude, construída à custa da negação do “outro”, carrega uma desafiante responsabilidade histórica. Em um país que ostenta cicatrizes profundas da escravidão e que, até hoje, ignora as contribuições e a plena humanidade dos negros, não posso ser conivente com a continuidade desse sistema.
Sonho com um futuro em que possamos caminhar lado a lado, verdadeiramente livres, em um país onde a identidade de cada pessoa seja motivo de orgulho e não de opressão. Avançar para esse futuro é uma tarefa árdua, sim, mas necessária. E se reconheço que sou parte do problema, acredito, também, que posso ser parte da solução.