(Esse artigo foi produzido no sábado, 11)
Alguma coisa acontece no mundo da política real brasileira. Trata-se de recriar o chamado poder moderador extinto em 1889 com o advento da República. Até então, o chamado quarto poder – moderador – era exercido pelo imperador. Cabia a ele manter a harmonia entre os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário.
Em pleno século 21, porém, assistimos passivamente a tentativa de delegar às Forças Armadas, especialmente ao Exército, o poder extinto há mais de um século. Os jornais eletrônicos de sexta-feira 10 e os impressos de sábado 11 trazem pelo menos três diferentes abordagens sobre a mesma notícia: questionamentos sobre a integridade do processo eletrônico de votação. E no domingo 13, artigo do jornalista Bernardo Mello Franco sobre o general ministro da Defesa em campanha.
Curiosamente, a fonte é o presidente Bolsonaro eleito pelo sistema que critica sem apresentar qualquer prova que comprove que poderia ter sido eleito no primeiro turno em 2018.
Às notícias de primeira página de sábado 11.
Estadão: “Eleições 2022 – Ao TSE, Forças Amadas defendem auditoria externa das urnas”
O Globo: “Defesa insiste em acionar o TSE e se diz desprestigiada”
Folha: “Empresa indicada por Bolsonaro quer mudar regra eleitoral”
Raríssimos são os leitores de três veículos impressos de comunicação. Mas os três abordaram o mesmo tema. Repercussão? Baixíssima.
Vou perguntar e responder ao mesmo tempo:
O que o Exército tem a ver com o processo eleitoral brasileiro? Absolutamente nada. Essa instituição do Estado tem seu papel definido na Constituição e seus funcionários públicos fardados são obrigados a cumprir e defender a lei magna. Ponto!
Por que os militares estão se manifestando?
Depois de várias manobras, Bolsonaro conseguiu controlar o Exército, talvez a arma que parecia mais resistente à subordinação política, colocando em segundo plano seu papel de instituição permanente do Estado.
O que mudou?
Na eleição de 2018, o então comandante em chefe do Exército lançou uma nota com ameaças, insinuando a possibilidade de um golpe com o apoio de parte significativa do poder Legislativo caso Lula fosse solto e saísse como candidato. Imediatamente, o poder Judiciário entrou em cena para colocar panos quentes e convidar – convite aceito – um general para “administrar” o Supremo Tribunal Federal – STF. Os ministros tornaram-se, desde então, reféns dos militares. Vive-se hoje uma queda de braços entre os três poderes e uma tentativa de recriar pelo menos informalmente o poder Moderador.
O que as urnas eletrônicas têm a ver com isso?
Trata-se de uma exigência do poder Executivo mesmo depois da fracassada de tentativa de golpe de Donald Trump em 06 de janeiro de 2021, embora a eleições norte-americanas sejam realizadas em papel impresso. Mas o objetivo é o mesmo: desmoralizar o sistema para viabilizar a “construção” de um governo populista de extrema direita, tipo o que existe hoje na Hungria. O ataque às urnas eletrônicas seria apenas um meio para impedir a vitória de outro candidato.
O que o Exército brasileiro tem a ver com o processo eleitoral?
Nada. Absolutamente nada além de dar apoio e sustentação em regiões distantes e de difícil acesso. Existe um poder responsável pela sua execução, o Judiciário, através do Tribunal Superior Eleitoral – TSE. Não cabe às Forças Armadas questionar o processo que tem uma Comissão de Transparência das Eleições, para a qual o Exército foi convidado e aceitou participar como colaborador.
Bolsonaro quer contratar esse Instituto, mas o presidente do PL é contra
Como a imprensa abordou esse episódio?
Estadão: “Defesa pede ao TSE que facilite auditoria das urnas por partidos”. Nenhuma crítica ao papel que o ministério da Defesa quer assumir. O ministro se esquece que seu cargo é político e que o presidente é candidato à reeleição.
O Globo: “Para Defesa, TSE desprestigiou Forças Armadas – Em ofício a Fachin [presidente do TSE], ministro [general] Paulo Sérgio Nogueira cobra que sugestões das Forças Armadas sobre processo eleitoral sejam analisadas. Tribunal reafirmou segurança eleitoral e diz que contribuições são bem-vindas”.
Folha: “Empresa indicada por Bolsonaro quer mudar regra eleitoral – Instituto Voto Legal, aberto em 2021, ainda não tem aval do TSE e fez propostas antes de auditar e fiscalizar eleição”. Essa empresa contratada pelo PL, partido do presidente, não tem qualquer experiência no assunto. A Folha foi o único veículo a apontar estranhas ligações entre a empresa de “auditoria” e seu relacionamento com aliados e partidários do presidente. Inclusive a pressão que o presidente do PL teria sofrido por parte dos bolsonaristas para contratar o serviço. (confira em https://twitter.com/fzambeli/status/1535259583438114821?s=24&t=HbLausrIbW2MmEPFCi46Mg
Por que os militares estão interessados no assunto?
As Forças Armadas possuem regras próprias em suas casernas do Exército, da Marinha ou da Aeronáutica. Ninguém se mete. Desde a seleção, passando pelas promoções até as condições em que seus membros são reformados (aposentados). Justiça Civil é só para os chamados paisanos.
Aparentemente, o ministro Paulo Sérgio mudou de opinião. Tão cioso de seus compromissos militares, foi selecionado, à revelia do capitão, para assumir o comando do Exército. Foi até considerado como um ponto de equilíbrio entre diferentes correntes castristas.
Paulo Sérgio ministro da Defesa é outro. Tudo indica que hoje faz parte do núcleo capitaneado pelo general Braga Neto, provável candidato a vice-presidente na chapa de Bolsonaro.
O que esperar desse quadro?
Na minha opinião, torcer para que as divergências militares sejam reais e possibilitem que instituições como o Judiciário e o Congresso façam prevalecer a lógica do bom senso: ditadura nunca mais. Oremos!