A GESTÃO CORRUPTA DE COLLOR DE MELLO COLOCOU OS CARAS-PINTADAS NAS RUAS EM 1992

Juntei tudo sob um só denominador comum: o diagnóstico de nosso tempo. Comecei pelo stress que tem comparecido em todas os balanços sobre a vida nesses dias guerreiros. Repararam como até quando o mecânico “vou bem” é retrucado no avanço da conversação as pessoas emendam “ando cansado/a demais”. E então listei situações que implicam o esgotamento coletivo: ressaca da pandemia; ódio político exacerbado; medo de assalto; negacionismos variados – além de científico, cultural; custo de vida; insegurança alimentar; polarização de classes sociais; dependência de redes sociais; aquecimento global; abuso de álcool e drogas daninhas; competitividade profissional, pressa, CPis, política partidária. Pronto, está nuançado o diagnóstico para tanto abatimento.

Dei uma dimensão de tempo e avaliei que há poucas décadas os problemas se agravaram de maneira a produzir uma geração sem causas definidas, sem objetivos comunitários ou preocupação com o social. Ousei pensar que o último movimento que deu forma a uma razão coletiva entre nossos jovens foi o “caras-pintadas” que juntou moços e moças, estudantes, em 1992. Tal esforço era resposta aos esquemas de corrupção implicando o então recém-eleito presidente da República, Fernando Collor de Mello. Com o fito de motivar o impeachment do mandatário escolhido depois de 21 anos de ditadura marcada por censura, repressão, tortura, mortes e banimento de opositores mais expressivos, jovens indignados lotaram ruas e praças e empunharam exitosas bandeiras de protesto. Pintando os próprios rostos como se fossem a um ritual indígena de guerra, foi esse o grito mais expressivo para a deposição do corrupto. É verdade que em 2013, novamente jovens saíram às ruas contra o aumento das tarifas de ônibus, mas sem a mesma organização e afinidade de propostas. Desde então…

Aumento da passagem de ônibus foi o estopim das manifestações em 2013

A soma desses argumentos me fez pensar nas plataformas de gerações, ou seja, nos ideários de grupos de pessoas que vivendo o mesmo período histórico padeceram conjunturas similares e foram educados sob os mesmos ensinamentos e  princípios gerais, recebendo estímulos socioculturais comuns. Como resultado deste tipo de educação, comportamentos e atitudes comuns marcam suas experiências vivenciais. Ainda que os estudos literários saibam se aproveitar melhor do conceito, é justo invocá-lo para a vida coletiva e é exatamente neste campo que se detecta a falta de causas comuns. Mesmo sem preparo específico para diagnósticos socio patológicos fica imediato associar isso ao surto de transtornos mentais tão comuns em nossos ambientes.

Não é preciso ser especialista para notar a disseminação de antidepressivos, ansiolíticos e tranquilizantes vendidos em farmácias e online, com ou sem receitas. O individualismo desmedido se manifesta em todos os campos da atividade humana, mas se expressa de maneira mais gritante em face do suicídio. E os números não mentem, pelo contrário, denunciam o fracasso de campanhas bem-intencionadas, mas incapazes de indicar saídas. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) revelam que as mortes autoprovocadas no ano de 2019 foram recordes, superando inclusive o número fatal de casos de câncer. Nesta relação tétrica, o Brasil ocupa o preocupante oitavo lugar com cerca de 40 casos por dia.

Atento ao andamento histórico, me preocupo em relacionar situações: a perda de causas coletivas, de situações que levam ao comprometimento político social, com o crescimento indiscriminado de personalismos individualistas. Talvez o apelo excessivo ao consumismo ajude a explicar a mudança de eixos participativos. E do consumismo para o capitalismo selvagem é um pulo só. E nem se fala apenas de capitalismo no sentido mal do conceito. A inescapável ligação entre democracia e capitalismo exige revisões que podem atenuar distâncias que se extremam.

Não seria muito fundo o poço do passado?

Termos cultivados desde o século XVIII como “fraternidade”, “igualdade”. “liberdade” e acrescente-se “solidariedade”, “bem-estar social” sugerem que o individualismo ampliado é o responsável pelo que a OMS chama de “mal do século 21” e que abrange 10% da população mundial. Acostumados a analisar fatos isolados, muitas vezes ao falarmos da realidade pungente de duas guerras sanguinárias, perdemos a noção de conjunto. Mais do que nunca, faz-se preciso uma revisão no conceito de progresso. Vivemos sob a égide da evolução, como se tudo caminhasse para aperfeiçoamentos. É exatamente nesse ponto que perdemos de vista o efeito perverso do excesso de consumo. A mercadorização de tudo, o barateamento de emoções e a carência de forças capazes de requalificar os valores essenciais ao convívio estão aí para provar que sem o surgimento de causas comunitárias nada será conseguido.

Sim, é verdade que é mais fácil achar causas que elaborar soluções, mas quem sabe a soma de desgraças não é um caminho para dar um basta. Lembro-me de Thomas Mann no clássico “José e seus irmãos” onde questiona “não é muito fundo o poço do passado? Seria sem fundo esse poço” e ouso dizer que sim, há limites, mas qualquer movimento tem que levar em conta o pacto coletivo. E quem está disposto a fazê-lo?…