“Pela primeira vez, eu estava só e andava nas ruas de uma cidade livre da nova Rússia…minhas reflexões eram atravessadas por movimentos de alegria, um orgulho vitorioso e também uma certa surpresa diante das coisas imensas, deslumbrantes, incompreensíveis que tinham ocorrido nestes últimos dias”.
Assim, N. Sukhanov, intelectual e militante, registraria suas emoções e perplexidades, suscitadas pela revolução russa de fevereiro de 1917. E. Dune, um operário, em Moscou, diria coisas parecidas: “Pela primeira vez em minha vida eu sentia uma tal atmosfera de alegria, quando todo o mundo que você encontra parece muito íntimo, da mesma carne e do mesmo sangue, quando as pessoas olham umas para as outras com olhos cheios de amor”.
Uma revolução empolgante – e imprevista.
É verdade que, em virtude das consequências da guerra, iniciada em agosto de 1914, o descontentamento crescia. Imaginada como um conflito curto e vitorioso, tornara-se uma tragédia, provocando críticas e denúncias. Em começos de 1917, na Rússia, havia 14 milhões de homens mobilizados e 5 milhões de perdas (mais de um terço, mortos). As elites reagiam com pressões e conspirações. Os trabalhadores urbanos, atormentados pela inflação e pela escassez, com movimentos de greve. Nas trincheiras de lama e de piolhos, a morte sempre à espreita, a desconfiança substituíra a resignação. Os informes da polícia política eram preocupantes, mas ninguém esperava um rápido desenlace, nem mesmo Lenin que, no exílio suiço, em conferência a jovens social-democratas, diria que os “velhos”(como ele se considerava, com 44 anos) talvez não vissem a revolução explodir, mas os moços certamente dela participariam. Um mês e meio depois, veio o terremoto.
As mulheres o iniciaram, em 23 de fevereiro (segundo o calendário juliano, usado na Rússia, correspondente ao 8 de março no calendário gregoriano, adotado no resto da Europa). As fotografias de época as mostram com rostos sérios, compenetrados, emoldurados por lenços brancos, presos embaixo do queixo, desfilando pela Avenida Nevsky, artéria central de Petrogado. Foram às ruas em comemoração ao seu dia internacional e em protesto contra a escassez do pão e as filas para consegui-lo no duro inverno. No dia seguinte, animados pelo sucesso, milhares de trabalhadores voltaram às ruas. Para surpresa geral, a polícia e os cossacos apenas observaram o movimento, o que encorajou, na sequência, mais um dia, o terceiro, de intensas manifestações. Decididamente, o processo saíra do controle.
Vieram então ordens formais do Tsar para que a repressão se desencadeasse com o rigor habitual. Foi por isso que, no quarto dia, 26 de fevereiro, a polícia e o exército abriram fogo contra as gentes. Ao contrário de certas lendas, aquela revolução não seria pacífica. Dados oficiais registraram 1.433 mortos e cerca de 6 mil feridos. Mas fora alcançado um ponto de não retorno, a partir do qual a repressão encoraja a raiva no coração e não mais amedronta.
Na noite do quarto para o quinta dia, vários regimentos se revoltaram contra a matança. Os oficiais que resistiram foram presos ou mortos. Assim, os manifestantes que voltaram às ruas, em ondas humanas, no dia 27 de fevereiro, confraternizaram com soldados receptivos. A fortaleza de São Pedro e São Paulo, calabouço histórico de revolucionários, foi tomada de assalto, procedendo-se à distribuição de armas a mãos ansiosas para usá-las. O pau quebrou feio em toda a cidade. Das prisões – abertas pelos rebeldes – foram libertados centenas de presos, muitos dos quais se dedicaram a assaltar pessoas e a saquear casas.
O poder, despedaçado, caiu na rua e a rua se serviu dele com a ira e a euforia próprias dos escravos que, de súbito, se libertam.
Nesta altura todos se haviam incorporado à revolução, configurando um processo unânime, sem falhas. O operário Dune registrou com amarga ironia: “A maioria daquela multidão estava ainda há pouco rezando pela boa saúde da família imperial”. Pois estavam todos, agora, clamando pelo fim da dinastia dos Romanov, velha de três séculos e que desabava depois de apenas cinco dias. No féretro oficial, todas as classes e categorias sociais, das cartolas aos aventais, dos quepes estrelados dos oficiais aos uniformes dos soldados, das damas engalanadas às mulheres simples do povo, todos choraram os mortos daquelas “gloriosas jornadas”.
Mas não foi uma revolução espontânea, pois nem um pic-nic se faz sem preparação e articulação, mas uma revolução anônima, não dirigida pelos partidos políticos e pelas conhecidas lideranças intelectuais. Estas a quiseram controlar, instituindo-se um governo provisório e um conselho – um soviete – de deputados operários e soldados. E pretenderam fazer de uma revolução imprevista, violenta, unânime e anônima, um processo de mudanças democráticas e reformistas. Eram sonhos que a vida, cedo, desfez.
Daniel Aarão Reis
Professor de História Contemporânea da UFF
Email: daniel.aaraoreis@gmail.com