Escultura em peças de aço da imagem de N.S. Aparecida maior que o Cristo no Rio, inaugurada na festa de 2023, construída por Gilmar Pina, de Ilha Bela, que aprendeu a esculpir com areias da praia e latinhas vazias

 Já disse que outubro é um mês perturbador. Arauto do fim do ano, os longos 31 dias parecem indecisos, contrapondo o cansaço da jornada anual com a esperança de um tempo novo que promete ser melhor, diferente, renovado. Entre a consciência das frustrações não compensadas e a ilusão de novas oportunidades, ficamos num limbo. Nesse vacilo, entre o velho e o novo, fazemos votos e torcemos — o que, para muitos, equivale a rezar, entendendo por orações um conjunto ilusório de aspirações.

Romeiros ocupam boa parte de rodovias que levam a Aparecida do Norte

É possível que esse sentimento seja comum a todo o Ocidente, mas entre nós ele ganha um contorno especial, típico, abrasileirado, característico da nossa cultura que, aliás, não renuncia às esperanças canalizadas por matrizes religiosas. E então cantamos juntos, torcemos juntos, rezamos juntos. E sabe-se: rezar juntos é um santo remédio. Dessa fraternidade emerge, então, a noção de comunidade de fé, que convoca posicionamentos e é tão forte que anula polarizações, junta diferenças e promove unidade. Isso é evolvente. Não posso dizer que sou católico praticante, mas também não me garanto um agnóstico convicto. Sou o que sou: ora professo, ora não professo, mas jamais deixei de buscar. É aí que meu lado historiador ecoa do passado e me divido entre duas forças que exigem justificativas que, expostas a duas celebrações outubrinas sugerem posições.

Desde pequeno, sempre fui fascinado por manifestações de fé, e duas delas, em particular, mexem com minha imaginação: a Romaria de Nossa Senhora Aparecida, em Aparecida do Norte, estado de São Paulo, e o Círio de Nazaré, no Pará. Em ambos os eventos, milhões de brasileiros se juntam, cada um dimensionando seus pedidos, promessas e esperanças, em celebrações que parecem unir o céu e a terra. Vendo as comemorações recentes, via acendida em minha o sonho de atualizar essas experiências, vivendo-as de perto, visitando essas duas festas e decidindo, enfim, qual delas, para mim, representa melhor o coração do Brasil.

A Romaria de Aparecida acontece todos os anos desde 1717, mas ganhou expressão nacional em 1980 com a decretação do Feriado da Padroeira – e, hoje, sua grandiosidade me impressiona e comove. A Basílica de Nossa Senhora Aparecida, imponente e majestosa, recebe peregrinos de todas as partes do país. Homens e mulheres atravessam distâncias, muitas vezes a pé, carregando cruzes, rezas e devoção. Confesso que me comovo muito observando a força desse movimento. É o Brasil caminhante, humilde, devoto, em busca de milagres e proteção da santa padroeira. A multidão vestida de fé é um retrato de um Brasil que, apesar das dificuldades, acredita no divino, no poder de Nossa Senhora Aparecida para iluminar seus caminhos.

Belém é tomada por fiéis que ocupam a capital do Pará

De outro lado, o Círio de Nazaré, no Pará, surgida em 1793, carrega sua própria aura mágica. Lá, as ruas de Belém se tornam rios humanos, guiados pela imagem de Nossa Senhora de Nazaré, também chamada de “Nazinha” pelos devotos. A corda, um símbolo de união e sacrifício, é puxada com fervor, conectando milhares de fiéis em um só corpo de fé. As procissões, o cheiro das flores e o calor amazônico transformam o Círio em algo único. O Norte se revela em toda a sua potência religiosa e cultural, com sua música, seu ritmo e sua profunda conexão com o divino.

Entre essas duas festas, fico me perguntando qual delas traduz melhor o Brasil que busco entender. É o Brasil de Aparecida, marcado por sua força em vencer as longas jornadas da vida? Ou o Brasil do Círio, com sua energia vibrante, sua festa calorosa e suas tradições enraizadas na cultura amazônica?

Símbolo de união e sacrifício, a corda é puxada com fervor por fiéis como um só corpo de fé

Sinto que um dia vou precisar caminhar nas estradas rumo a Aparecida e mergulhar no rio humano do Círio para, finalmente, decidir. Mas talvez, no fim, a resposta não esteja em qual das festas “melhor” representa o Brasil, e sim em como, juntas, elas mostram diferentes faces de um país tão vasto e diverso. Afinal, somos esse povo que se equilibra entre o sacrifício silencioso e a celebração vibrante, entre o Sudeste e o Norte, entre a terra e o divino.

E, quem sabe, ao caminhar por esses dois santuários de fé, eu compreenda que o Brasil não precisa de uma definição única. Ele é múltiplo, como suas romarias, e sempre encontra novos caminhos para expressar sua devoção, sua luta e sua esperança.