Não sou do tipo que faz transferências ligeiras de fatos históricos projetado no presente. Pelo menos não deveria ser. Como profissional da história, sei que o passado não se repete e que, mesmo respeitando Marx, nem mesmo como farsa acredito na reedição do pretérito.

Essas noções me vieram à cabeça ao retomar alguns pontos do epicurismo grego. Lembrando que a morte de Epicuro sempre foi um dos episódios mais empolgantes de minha memória de estudante de filosofia, restou-me refazer pressupostos que justificam a tentação “presentificadora”.

Nascido numa colônia ateniense (Samos 341 – 271 a.C.), jovem ainda Epicuro prestou serviços militares em Atenas onde se aprofundou na contemplação sistemática da vida. Voltou ao solo natal, mas retornou a Atenas onde foi professor por 35 anos.

EPICURO

Independente de traços biográficos, vale lembrar o radicalismo epicurista. Passados sete anos da morte do mestre Platão, em plena era de desconstrução do apogeu grego, Epicuro pregava o prazer imediato, em detrimento dos projetos imperiais, a longo prazo. Em síntese, para ele, o melhor a ser feito por qualquer um seria acumular boas lembranças, guardar as sensações extraordinárias para, na velhice ou nos momentos aflitivos, ter o que recordar. Morrer bem era o melhor da meta epicurista. Dizem que no caso pessoal, depois de graves dores motivadas por pedras nos rins, ele se despediu da vida rodeado de amigos e, quando pressentiu a chegada do fim, desnudou-se, entrou em banheira com água morna e sorveu boa taça do vinho mais reputado. Tudo cercado de admiradores. Assim, entrando em êxtase teria transcendido. Verdade ou não, essa narrativa sempre me encantou. Tanto pelo exercício da guarda de frações de ocorrências boas como pela consciência, e até controle e escolha da própria morte. Sinceramente, fico fascinado com as lições epicuristas.

O que mais me atrai na possibilidade de pensar essas lições transpostas para o presente é que vivemos também uma época de confusão e desorganização progressiva de valores tidos como fundamentais para o convívio social. Segundo Epicuro, é exatamente nesse contexto que cabe a busca de compensações pessoais, dos tais pequenos brindes. “Ser feliz e buscar o prazer” era sua meta e isso contagiava seus pares decepcionados com o mundo em que viviam. Convém dizer que o epicurismo vingou por muito tempo, até que, 200 anos mais tarde, Cícero, com veemência, desmereceu tais preceitos acusando-os de hedonistas. Interessante assinalar que a noção de paraíso alcançável na Terra, fora uma tentativa testada por Epicuro que criou o chamado “Jardim”, espaço apartado de Atenas, onde os adeptos teriam ampla liberdade de ação. As regras do espaço utópico e imediato eram curiosas, pois, por exemplo, mantinha-se a propriedade privada e os estatutos pessoais (como a escravidão por exemplo), mas os indivíduos tinham o respeito como base de convívio e a ajuda mútua como prática rotineira. Alguns discípulos de Epicuro, como Timócrates, o estóico Epicteto e principalmente Diógenes Laércio trataram de distorcer o ordenamento epicurista e isso contribuiu para seu descrédito como grande pensador.

Epicuro escreveu muito, mas apenas em 1928 foram encontrados fragmentos de sua extensa produção. O descalabro do mundo contemporâneo, agora, se preocupa em reestudar esse pensador carismático, provocativo que, afinal, coloca em questão alguns dos grandes dilemas da contemporaneidade: somos felizes sozinhos, com nossas memórias boas, de gozo e prazer, ou apenas seremos felizes se somarmos coletivamente nossas alegrias e esquecermos os pontos ruins?

Hedonismo

Para Epicuro, Jardim seria um espaço onde os adeptos teriam ampla liberdade de ação

O aclamado prazer pessoal, individual proposto por Epicuro, em análise mais profunda é complexo, posto que, para ter validade, precisava ser contado em público. Os ouvintes, ou a plateia, seriam parte inerente a uma espécie de vanguarda da “sociedade do espetáculo”. Nessa linha, Epicuro difundia a imperiosidade do afeto social. Para quem trabalha com questões da análise da memória social, os preceitos epicuristas são fundamentais, pois implicam seleção (de fatos bons, gostosos, entusiastas) com o esquecimento das atrocidades da vida. É neste sentido que se encontra razão para retomar o estudo de Epicuro. Sem dúvida, de maneira mecânica, numa sociedade capitalista e que tem como base o consumo e a cumulação de bens, temos que perguntar: o que é felicidade e prazer num contexto tão rápido e exigente de reposições? E a que público temos que nos remeter? A metáfora do “Jardim” permanece no nosso imaginário, mas sem noções epicuristas ele é apenas um lugar físico. Que Epicuro nos salve, agora e na hora de nossa morte. Amém!