Nesta sinistra pandemia, a ideia de que viveremos livres, corajosos e solidários foi o melhor presente de Natal que eu poderia receber de Leandro Roque de Oliveira, o Emicida,
‘Esta noite vai transformar muita gente’. Uma noite calma e sem vento, uma quarta-feira inusitada de novembro de 2019. Aconteceu no Theatro Municipal de São Paulo, apropriado por mulheres, crianças e homens negros. As escadarias e balaustradas de mármores brancos e coloridos, os tapetes vermelhos, os pesados lustres de cristais, pasmados de surpresa, nunca tinham visto coisa igual. Em cena, o show “AmarElo, é tudo pra ontem”, liderado por um jovem, cujo nome de batismo, Leandro Roque de Oliveira, só a mãe conhece.
Cabelos crespos que assumem diferentes formas segundo a disposição e o humor, rosto meio arredondado, óculos de aro fino, olhar algo triste e melancólico, perpassado pela ironia, sujeito ao riso franco, mas atravessado, às vezes, pela raiva, fez-se conhecer nas quebradas e nos morros, no asfalto e nas cidades, por Emicida.
“Meus sonhos e lutas começaram muito antes da minha chegada.”
Machado de Assis
Num primeiro movimento, a recuperação do passado e, no passado, o protagonismo do povo negro. Rebobinando o tempo, o encontro com as Irmandades Negras e com Geraldo, o Tebas, primeiro arquiteto de São Paulo, cujo nome foi apagado, mas cujas mãos marcaram a primeira versão da Sé e do chafariz da Misericórdia. E mais o Aleijadinho, Mestre Valentim, os irmãos Rebouças, o abolicionista Luis Gama, Tia Ciata, Teodoro Sampaio, Enedina Alves, Machado de Assis. Adentrando o século XX, Ismael Silva, Pixinguinha e Donga, os Oito Batutas e a invenção do samba, o encontro com o modernismo, a descoberta do negro pelas artes plásticas, a descolonização do saber e a valorização das cores, da atmosfera, dos gostos, dos paladares e dos sabores populares. Sem esquecer o Bide e a criação das escolas de samba.
Mestre Marçal conta: “Há controvérsias quanto ao tamborim, mas não se discute que o Bide fez o surdo de uma lata de manteiga e papel de saco de cimento. Umedeceu o papel, botou na lata de manteiga, amarrou com arame, acabou de umedecer o papel, deu um calorzinho no fogo, só para dar uma sonoridade e desceu para o Largo do Estácio”.
Pixinguinha
Chegando mais perto, a Frente Negra brasileira, Abdias Nascimento, o Teatro Experimental do Negro e a imensa Ruth de Souza. D. Ivone Lara e Lélia Gonzalez com a proposta de um português específico, o pretoguês. Os veteranos do Movimento Negro Unificado, ovacionados, emocionados, emocionando. E a elegância invulnerável de Wilson das Neves. Mesmo assim, a certeza de que os desafios com que lidam os negros são mais pesados. Diziam as tias: “Cê já é preto, vai ter que fazer dez vezes melhor para ser igual. Quando você é um corpo preto, a compreensão e o próprio luto são menores”. Larissa Luz complementa: “A felicidade do branco é plena, a do preto é quase”.
Num segundo movimento, a abertura para o mundo: Aimé Césaire, Senghor, Luther King, Angela Davis, Malcolm X, os Panteras Negras, Nelson Mandela. “Rodei o globo e hoje tô certo de que todo mundo é um.” Ampliando a visão, a integração das demandas. Combater de forma unificada as exclusões de classe, de raça e de gênero. Para superar as desigualdades e injustiças, “a única coisa que a gente tem é uns aos outros… tudo, tudo que nóiz tem é nóiz mesmos. E, se a gente se desconecta, fudeu”. Personificando a amplitude, a citação de Oswald de Andrade (é no encontro que nossa existência faz sentido) e a presença de Fernanda Montenegro, recitando Ismália, a que desejava as luas do céu e do mar, a alma subiu ao céu, mas o corpo desceu ao mar.
Martin Luther King
A construção do futuro melhor dependerá da capacidade de articulação, vontade determinada e raiva no coração. Que é como cantam, em trio, Majur, Pablo Vittar e Emicida, os belos versos de Belchior: “Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”.
Nesta sinistra pandemia, a ideia de que viveremos livres, corajosos e solidários foi o melhor presente de Natal que poderíamos ter. Obrigado, Emicida