Foi uma noite difícil. Insônia brava. Fiz todos os exercícios recomendados para “apagar”. Todos: permaneci imóvel, olhando para o teto; mudei para posição fetal; sentei-me à beira da cama; procurei meditar; recusei ler, pois isso me acende, como me acende também ver TV, enfim, levantei-me e comi um biscoito gostoso, escovei os dentes novamente, estava muito quente para tomar um chá, fui de água mesmo… e nada! Sabe o que é nada? Pensei em rezas, mandingas porque nem o zolpeiden fez efeito. Nada, outra vez. Olhava com raiva para o relógio que insistia na marcha lenta, tic-tic-tic. Resultado: assumi a noite e à meia luz parti para a música. Mas também não poderia ser qualquer som, haveria de buscar algo que me acalmasse. Achei aquele canal de seleções pré-escolhidas, olhei com certo triunfo o “cardápio”, até que optei pelo de “MPB”. E logo a primeira canção me fisgou. Caetano ao violão, cantado “reconvexo”.
Em 1989, durante viagem da Roma, Caetano escreveu reconvexo para a mana Bethânia
Às vezes fico pensando na crueldade disfarçada na figuração daquele Veloso. Com a mana Bethânia não acontece o mesmo. A voz dela é clara, incisiva e coerente com tudo que canta e dança. Ela é firme e de uma firmeza condutora de lógica convincente. Gosto demais das escolhas dela, mensagens na veia. E dele gosto também, muito, mas é um apreciar complexo, composto, dialético, sempre meditativo e reticente. Há tantos enigmas nas apresentações desse bardo que, ou me perco em análises ou, meio alienado, curto a melodia. Talvez a maior charada caetânica seja a combinação de sua voz linda e mansa, com a perversidade das palavras que entoa. É como aquelas canções de ninar tipo “boi, boi, boi da cara preta, pega essa criança que tem medo de careta”. Maldade, né?! Então Caetano vem dessa tradição camaleônica, “cabeça”, e foi na exata circunstância da insônia que ouvi “reconvexo”. Reconvexo, que palavra! Pode? Desapertei de vez e varri a possibilidade de vigília para a noite empoeirada de estrelas.
Como maldisse a inteligência do genial Caetano! Ele forçava articulações dignas de um ginasta da palavra. Puxando paradoxos impossíveis mesclava a chuva no deserto, com os automóveis de Roma, Iara misturada com a matriarca Negra, e dessa salada ia avisando “Você não me pega/ você nem chega a me ver/ Meu som te cega, careta” e seguia arrematando com um fatal “quem é você?”. Pronto estava dado toque definitivo do eterno despertar. “quem é você?” achei que jamais voltaria a dormir. E restava me buscar no mapa de mim mesmo.
Diria que a longa canção me fez sentir jovem vestibulando tendo que entender a pergunta filosófica no espaço rápido de uma faixa de álbum musical. E felizmente o refrão era repetido alertando para alguma resposta possível. Depois de ladainhar paradoxos ele chega sorrateiro à própria casa materna e cantarolando pergunta “Quem não rezou a novena de Dona Canô/ Quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor/ Quem não amou a elegância sutil de Bobô”, e arremata com fatalidade “Quem não é Recôncavo e nem pode ser reconvexo”.
A criatividade de uma noite com insônia
No fluxo da balada me transportei para meu eu e me buscando no “quem é você?” indaguei lugares determinantes de minha existência… E cheguei a Taubaté, minha cidade adotada. E nela me perguntei, pensando em minha família, na loja de meus pais: “quem não comprou panos na Casa Abrahão/ Quem não pechinchou ouvindo histórias de meu pai/ quem não aprendeu uma receita de doce com minha mãe/ quem não voltou àquela loja”… quem não, não é taubateano e nem pode ser étabuat. Aliás só os étabuats de corpo ou de alma entenderão a viagem de minha volta.
Ah!, devo dizer que desliguei a música e ligado no registro daquele eterno retorno, parti para esta escrita que não deixa de percorrer uma rota pavimentada de porquês, reconvexos. Pronto, estava respondida a questão: quem sou eu? Sou fruto daquele universo imenso em sua pequenez, elo entre a vida de uma família de imigrantes libaneses e uma comunidade inteira que aos meus olhos sempre infantis se vestia com roupas compradas em minha casa, onde tudo começou.