Além do misterioso e excitante caso de Lilith – a suposta primeira mulher criada por Deus – há outra passagem bíblica que me atiça: qual o fruto e a folha usada por Adão e Eva, depois da expulsão do Paraíso, para “esconder as vergonhas”? Nem interessa saber se a tentação de “comer o fruto” teria valido a pena (pelo menos para justificar o pecado que se chamou “original”). Em complemento, fico me perguntando sobre as alternativas capazes de explicar a espécie da árvore – e o tipo de folha – do fruto fatídico. Nas primeiras traduções da Bíblia em voga até o século IV, falava-se de uma figueira, mas há dúvidas relativas ao tamanho das folhas e à força dos galhos, pouco robustos para suportar uma serpente capaz de seduzir pela oferta do tal fruto irresistível. O correr dos séculos, contudo, consagrou outra versão que, segundo o sábio São Jerônimo, seria a real árvore, fruta e folha: a macieira. Aliás, esta foi a versão que atravessou séculos e que tomou conta do imaginário fermentado por pintores, escultores, poetas e sermonistas. Sem entrar no mérito da questão, cá entre nós, esteticamente a maçã é bem mais fotogênica e de fácil reconhecimento que o figo. Além de tudo, a maçã tem sido assimilada como fruta pretexto seja na lenda de Guilherme Tell ou da Branca de Neve. Como “fruto proibido” não faltam referências, poemas e canções saudando a maliciosa “fruta do amor”.
De toda forma, segundo exegetas, a mudança da figueira para a macieira se deveu a um equívoco de tradução. São Jerônimo, ao se deparar com o termo hebraico “malum” em latim, confundiu as palavras homônimas “mal” com “maçã”, ambas com a mesma ortografia. Foi o que bastou. Por séculos a maçã foi a escolhida. Não pensem, porém que esse predomínio ocorreu sem contestação. Não, mas de tal maneira foi aceito que se vulgarizou em outra polêmica, não menos interessante, o chamado “pomo de Adão”. Sim, também desprezada a prioridade no pecado – quem teria comido o fruto proibido antes, Adão ou Eva – a polêmica merece retomada, pois diz a tradição que o homem comeu primeiro e por isto, sua garganta foi amaldiçoada com o gogó ou “pomo de Adão”. Entre lembranças e apagamentos, o caso da folha continuou, e o termo “pomar” ganhou significado especial, de plantação de frutas, pois seria resultado do “suor do rosto” de quantos pagam pela farra de Adão e Eva.
São Jerônimo, tradutor da bíblia: mal e maçã teriam a mesma ortografia em hebraico
Recentemente, contudo, uma nova substituição tem atormentado a tradição. Além de a figueira ter sido trocada pela macieira, cogita-se que a verdadeira folha teria sido de bananeira. A “nova” escolha deve-se ao reconhecimento registrado em um artigo escrito por Dan Koeppel, autor de um livro irresistível chamado “Banana: o destino da fruta que mudou o mundo (“Fate of the Fruit that Changed the World”). Este curioso texto mereceu atenção pública e foi complementado por outro, igualmente provocante, também dedicado a interpretar os símbolos e metáforas bíblicas “A Linguagem Secreta das Igrejas e das Catedrais: Decifrando o Simbolismo Sagrado dos Edifícios Santos Cristãos” (“The Secret Language of Churches and Cathedrals: Decoding the Sacred Symbolism of Christianity’s HolyBuildings”), de autoria de Richard Stemp. Seguidores desta proposta alegam que a banana é mais próxima do símbolo fálico que, por sua vez, serviria de sugestão ao ato sexual transgressivo. Mas os argumentos progridem também por outras variantes. Sabe-se que as bananeiras são originárias do Sudeste Asiático, local que se imagina ter sido o Paraíso. Além do mais, a banana é tida como o mais antigo dos frutos e por ser rizoma depois de dar frutos em cachos vai renascendo progressivamente. Existe uma corrente que professa ser a banana o fruto “da ciência do bem e do mal”, nomeada em latim como “Musa Sapientum” e que, assim, como divindade do conhecimento, seria responsável pela consciência do ato transgressor que quebrou o pacto de Deus com o primeiro casal.
A fantasia produziu infinitas imagens do primeiro casal
Frente a este debate instigante, resta ver a atualização das escolhas. As feministas criticam a aceitação da banana como eleita porque, pelo tamanho e formato da fruta, privilegiaria os homens. Além disso, mais um fator atua nesta controvérsia: seria a mulher a agente do engodo, e o homem sua vítima? Enfim, me pergunto, por que estas questões não entram nas aulas de religião? Qual a razão dos sermões evitarem tais polêmicas? Não seriam ganchos úteis para a discussão de gênero e poder na sociedade atual? Ou é melhor ficar quieto e continuar navegando pelo mar obscuro das certezas definidas? Figueira, macieira ou bananeira? Silêncio ou debate?