Estava em viagem de férias e me pouparam saber que um grande amigo, parceiro decisivo em minha carreira, estava internado em estado grave. Foi bom e foi ruim. Bom porque teria me preocupado sem alcance para alguma atitude. Ruim porque ao chegar me senti esvaziado do dever de companhia. Cumprida a visita, depois de longa conversa e ciente da revelação de detalhes doídos pelo padecimento hospitalar, saindo de sua casa, fiz descansar meus olhos no mar amansado em azul escurecido. Estava em Copacabana e a proximidade sonorizava as ondas que batiam consolando. Era um fim de tarde fria, quase soturna e indagadora de sentidos. Lembrei-me, meio por acaso, de uma frase que me marcou quando outro querido respondeu à fatídica pergunta “mas o que é a vida?”. Também bastante combalido, o amigo respondeu “a vida é uma piada de mau gosto que nos coloca no enredo coletivo e depois nos tira sem que saibamos o final”. E em minha cabeça voadora tudo se misturava. A finitude se fazia tema.
Demorei um pouco para me recolocar. O retorno à minha casa permitiu destilar pensamentos episódicos que, em suma, levaram-me a pensar no sentido de minha própria experiência. Mas tudo era algo fluido, pobremente filosófico. Na formulação de alguma teoria restava um quê prático e imediato, urgente e necessário. Fora como se me colocassem frente a um espelho e tivesse que enfrentar o tempo que me resta. Então, outra frase me possuiu, esta de Guimarães Rosa: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. E coragem de viver o que resta ser vivido virou uma espécie de ponteiro explicativo do futuro.
“Ninguém é igual a ninguém, todo ser humano é um estranho ímpar”, Drummond
Notei, vez mais, a gravidade de me ver resultado de um momento vivencial que invariavelmente, todos experimentamos em termos geracionais. Sim, refiro-me àqueles que ousam atravessar a marca dos 70 anos. Coisa séria chegar aos 80 e pensar o futuro. O que nos resta? O que fazer do tempo que nos falta? E depois disso? É preciso sim ter coragem para satisfazer tal curiosidade…
Novamente o dever de resposta mostrou suas garras. E arranhado fui dando sentido aos conhecidos que já completaram a viagem neste plano, supondo o sentido de suas experiências. E olha que a procissão não é pequena. Tantos partiram… Pensando nas marcas deixadas por eles foi-me revelando a palidez da existência individual, do fátuo de tudo que fazemos e das crenças que julgamos professar como se fossemos capazes de mudar as coisas. Tudo passa: verdade implacável e junto nós nos passamos. “Ninguém é igual a ninguém, todo ser humano é um estranho ímpar” dizia Drummond e na unicidade do que somos viramos pó no máximo embalada de saudade etérea. O que podemos deixar é a memória do que fomos e assim, na liquidez das lembranças, sobreviveremos enquanto alguém recordar nossas peripécias. Sabe, pensando nessas coisas todas aspiro que minhas lembranças – ou as lembranças por mim deixadas – sejam minimamente alegres, provoquem algum riso ou pelo menos ternura.
Silvio Tendler, um dos autores do manifesto “Vida acima de tudo”
Por mais que lutemos, nossa eternidade não amplia temporalidades resistentes. Ela perdura enquanto não apagada totalmente. E então me pergunto de que vale ser lembrado como nome de rua, busto em algum lugar público, ter nome em capas de livros ou assinatura em quadros ou escultura? Nossa imagem e voz pode ser gravada e mantida em nuvens que, contudo, também passarão ou repousarão perdidas em algum céu frequentado por memórias fátuas. E foi com tal medida que retomei meu eixo supondo avaliar o que me resta. Minha finitude está exposta, que ela venha me colher no propósito de ser melhor. Vou avaliar meu projeto de fim e por ele me redimir de viver por viver como se restasse continuar sem saber por quê. Por esta mensagem começo meu projeto de finitude. Prometo…