A vencedora Imperatriz Leopoldinense levou as aventuras de Lampião para o Sambódromo
Gosto muito de carnaval. Aprecio tudo: músicas, espírito fanfarão, buchicho teórico-interpretativo e até perdoo aqueles mal-humorados que optam por retiros espirituais, praias solitárias, montanhas silenciosas e demais menosprezos. Gosto, mas gosto mesmo é da agitação, povo na rua, fantasias, da pouca roupa, blocos, fervo popular e licenças marotas que dialogam com a sisudez dos dias ordinários.
Ainda sentindo o aroma da festa, retomo o dever de história e reforço o fio explicativo que leva ao significado da celebração na memória nacional. Sim, há algo de pendular na consciência sobre o efeito do carnaval na tradição brasileira. Em uma ponta a brincadeira marota e na outra a potência crítica. Sem dignificar a farra coletiva com filtros intelectuais, vale reconhecer que uma das marcas do carnaval brasileiro é o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Na Sapucaí a mais elaborada dimensão do que é nossa cultura.
Bicheiro Castor de Andrade ajoelhado diante da Comissão Julgadora em 1993
A par do encantamento das apresentações, destaca-se a provocação às visões oficiais, condição que remete à sempre mal compreendida organização comunitária e sua relação com as diretorias, jogo do bicho, políticos. Comenta-se bastante sobre manipulações, patrocínios e usos dos diversos desfiles – aliás, assim que passa a data, faz parte da dicção midiática falar mal do carnaval – mas, pelo reverso, é pouco valorizada a evolução política das diversas expressões.
Não que o carnaval das escolas de samba tenha deixado de lado os enredos encomendados, laudatórios e propagandísticos. Não, mas algo mais esperto tem agitado a percepção atenta às mudanças. Uma das mais claras alterações são os crescentes “enredos manifestos”, nos quais reivindicações são feitas em nome da igualdade e dos direitos humanos. A Beija-flor, por exemplo, ao falar do segundo centenário da Independência alude à participação popular na Bahia onde a expulsão dos portugueses foi aguerrida e teve adesão de várias camadas sociais.
Ao longo dos anos, o Nordeste brasileiro tem sido tema escolhido e sempre com vocação triunfal. Este ano a escola vencedora, a Imperatriz Leopoldinense, com graça e pertinência, levou para avenida as aventuras de Lampião que, depois de morto, teve a alma recusada tanto no céu como no inferno. A alusão ao cordel carreou junto a recuperação de um herói popular pouco prezado na ordem oficial. Subversão pura. Na mesma linha vencedora, a Viradouro recobrou outra personalidade subterrânea, a história incrível de Rosa Egipciaca, escrava que transitou entre a prostituição e a santidade, a primeira negra a escrever um livro no Brasil.
Imperatriz Leopoldinense levantou o público
Mas não só de subalternos é recontada nossa história. Preocupada com a revelação dos búfalos na Ilha de Marajó, a Paraiso do Tuiuti retraçou a introdução do animal no Pará e suas influências no cotidiano local. A cerâmica de Mestre Vitalino das imediações de Caruaru foi recriada pela Mocidade Independente de Padre Miguel que saudou Pernambuco. Festejada mesmo, ao longo de anos, tem sido a Bahia que neste ano, além da Beija-flor, foi tema de mais duas agremiações: a querida Mangueira desfilou referências à música, aos cultos afro-brasileiros e aos trios elétricos. Com muita proximidade a Unidos da Tijuca além de citações gerais valorizou o acarajé.
Império Serrano homenageou Arlindo Cruz com 11 dragões concorrentes
Há algo mais a dizer neste elogio ao carnaval das escolas de samba deste ano: a consagração da heterodoxia religiosa. Como se fosse um arremate premeditado, a Vila Isabel cantou “nesta festa eu levo fé”, percorrendo as diversas manifestações da história num voo rápido e muito bem articulado. O grande destaque foi o magnifico carro alegórico com um São Jorge de 15 metros e com efeitos especiais. Não há como negar a popularidade do santo mais querido pela maioria dos carnavalescos. Se sempre foi assim, a consagração deste ano tornou definitiva a afirmação daquele que matou o dragão do mal. Sim são Jorge atravessou os desfiles, a começar pelo Império Serrano que abriu o desfile em homenagem a Arlindo Cruz com 11 dragões a serem vencidos (em alusão às demais 11 escolas). A Imperatriz com uma ala intitulada “manda chamar Jorge” invocava o santo como ajuda para o primeiro lugar. Nada, porém, foi maior e mais exuberante que a Grande Rio que em honra a Zeca Pagodinho exultou seu santo protetor com 23 imagens diferentes do santo guerreiro.
E assim o carnaval deste 2023 deixou suas digitais que certamente ficarão na memória desta festa que é sempre semente de outras melhores. E que tudo venha sob a proteção de São Jorge… De São Jorge ou de Ogum, como gostam os carnavalescos raiz.