Olimpíada registra o momento histórico do Brasil que trocou astúcia por furto
Dona Palmira, diretora do Grupo Escolar “Jovelina Gomes”, que meu amigo de infância Sales Gaudêncio mandou reformar nos anos 50, para meu imenso gáudio, ensinou-me, no cafundó dos anos 50, a amar os dicionários. Esta lição, aprendida no sertão do Rio do Peixe, numa infância de frustrações que me tornou adulto antes do tempo, muito me tem valido. Pai dos burros, não. Pai dos inteligentes! A frase não é minha, mas do mogiano Haisem Abaki, âncora da hora matutina (7 às 8) na Rádio Estadão (FM 92,9), em que comento de tudo um pouco, imitando, até onde me permite o parco talento, o que aprendi de rádio com Vicente Leporace no Trabuco da Rádio Bandeirantes nos anos 70, quando cheguei a São Paulo de Piratininga. Aos 65 anos, cada dia mais parecido (só fisicamente) com Chico Anysio, como atestam amigos de infância e frentistas de posto de gasolina, todos rindo na minha cara, gosto mais de consultar dicionários do que de ler romances policiais. Nem por isso deixo de cometer erros crassos de semântica. Só descobri que estava usando truísmo de forma equivocada quando consultei, tardiamente, o Aurélio, dicionário assinado pelo acadêmico alagoano, mas de fato feito por meu colega de Jornal do Brasil e amigo de infância de Sarney e Gullar em São Luís do Maranhão Joaquim Campelo Marques.
Minha mais nova implicância é com o uso equivocado do plural na palavra Olimpíada ao se referir à que atualmente se realiza no Rio de Janeiro, que, aliás, continua lindo: a Rio 2016. Ligo a televisão e ela é dita no plural, nos intervalos comerciais comete-se o barbarismo de número nos anúncios, ouço o rádio e os colegas abusam desse estúpido. Depois de mais uma aula na “Escolinha do Professor Neuminho”, subo a meu tugúrio na redação e abro o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Parêntesis: convivi com o grande filólogo. Como leitor desde a leitura da ilegível tradução que ele fez de Ulysses, de Joyce, na longínqua adolescência de Campina Grande. Pessoalmente, quando assessorei Zé Eduardo de Andrade Vieira no Ministério da Indústria de Itamar e Houaiss era ministro da Cultura. Até hoje o imito quando uso discrepar em vez de discordar. É mais bruto, tem mais ênfase, não é? Abri o catatau e lá estava a definição. “Olimpíada: cada um dos intervalos de quatro anos entre dois jogos olímpicos pelo qual o tempo era contado na Grécia antiga”. Curto, fino, letal. Uma vez, em entrevista, Jorge Luís Borges me disse que um homem inteligente limita-se a reler. Pois sabe que dificilmente encontrará algo melhor do que o que já leu antes. Gênio é gênio. Desde que li esse verbete, meus amigos, meus inimigos, não paro de relê-lo. É uma fina flor de elegância do vernáculo com a marca indelével da autoria de seu Antônio, com quem só me emparelho pelo uso do acento circunflexo no prenome.
Pois bem. Tenho criticado, desde que o Rio, que amo – sou Flamengo e sou Mangueira e não conheço praia mais linda do que Copacabana – bateu Tóquio, Chicago e Madrid na escolha pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) para sediar os Jogos Olímpicos (este é o plural sinônimo registrado nos dicionários, inclusive o de Houaiss, levantino como Mário Chamie, ai, que saudade, e meu colega Haissem), mercê do charme (e vai saber lá mais o quê) do Pai Lulinha. E recentemente mais ainda, após ter ouvido inúmeras entrevistas do prefeito da Cidade Maravilhosa, Eduardo Paes, para defender o indefensável (desabamento da Ciclovia Tim Maia) e justificar o injustificável (os dejetos flutuantes da deslumbrante Baía da Guanabara). Nos raros momentos em que Paes cala falam por ele ora o diretor de comunicação do evento, Mário de Andrada, cuja vogal final no sobrenome salva as melhores lembranças que todos devemos ter do autor de Macunaíma, ora o diretor do show de abertura da Olimpíada carioca, tão “eduardopaeseano” que imita os pronunciamentos do chefão até no timbre da voz.
A dupla acima citada – e não exijam de mim a citação de quem disse exatamente o quê – deu a definição exata deste irrepetível carnaval em agosto, em tudo encarnando o que Paes lembra e Mário de Andrade criou: o herói sem nenhum caráter. É o que são os cariocas da gema. É o que somos nós, brasileiros, ou seja, cariocas arrivistas. Bilhões de terráqueos verão daqui a pouco o show da tolerância na Pátria da Intolerância, o Brasil da guerra dos golpistas contra os socialistas, dos coxinhas contra os mortadelas, da zelite branca de zói azu contra os brancos de alma negra, guerreiros do povo brasileiro. É a consagração do jeitinho na versão criminosa, a gambiarra.
Pois, como disse muito bem o chefão da comunicação dos Jogos do Rio, há uma diferença nada sutil entre gambiarra e jeitinho. Socorro, Houaiss! Gambiarra, como ensina o mestre, é, originalmente, aquela “série de pequenos refletores colocada no teto de um estúdio ou de um palco”. Mas ninguém precisa ir ao teatro para saber que a primeira definição, e a definitiva, é a popular em favelas e condomínios de luxo: “extensão puxada fraudulentamente para furtar energia elétrica”, ou seja, “gato”. Miau! Jeitinho, como ensina o filólogo, é uma “maneira hábil, esperta, astuciosa de conseguir algo, especialmente algo que à maioria das pessoas se afigura como particularmente difícil”. Espetacularmente preciso, não é? Além de conveniente: uma frase da lavra de Houaiss sempre beneficia o leitor neste texto, nem sempre tão exato e cheio de charme.
Ao distinguir jeitinho de gambiarra, o comunicador da Olimpíada quis se livrar da pecha de malandro. Terminou pespegando na sua festa de abertura para bilhões o rótulo de um delito criminal muito praticado no Brasil oficial destes nossos tempos: a esperteza virou furto. Uau! É por isso que gosto de dicionários, especialmente os de Aurélio e Houaiss: só eles nos salvam da constatação malandra de Tancredo Neves, que sempre ensinava a seus discípulos (mas parece que escapou a seu próprio neto, Aécio Cunha) segundo a qual “a esperteza quando cresce demais engole o dono”.
De qualquer maneira, ainda que tenha sido absolutamente sem querer (faltando à frase o “querendo” de Chaves), Andrada, cujo sobrenome lembra o da família do maior brasileiro de todos os tempos, José Bonifácio de Andrada e Silva, terminou por formular o maior legado, embora implícito, dos Jogos cariocas. Nesta hora de crise, a maior de todos os tempos, com precisão, o presidente do COI, Thomas Bach, constatou, com seu rigor alemão e seu sobrenome do musicista genial, na entrevista ao lado de Paes, que ficou conhecida como a “guerra do caviar”.
Nosso Brasil nunca foi Pátria Educadora e agora está deixando de ser o país do jeitinho. É, sim, e cada vez mais, o berço da gambiarra, na qual caixa 2 não é crime, pedalada não é drible, mas trapaça, e se inventa o golpe “branco e manso”, com direito de defesa e sem tanques nas ruas, a não ser, é claro, para proteger as “olimpíadas”, que, para não trair o filólogo, ganha uma letra esse no fim, mas perde o tipo capital no começo.