Para chefe de polícia com sobrenomes de Lampião invertidos, massacre foi “um sucesso”
José Nêumanne*
No primeiro dia de 2017, um antigo e muito próximo espírito santo de orelha de Michel Miguel Elias Temer Lulia deu-lhe um conselho que ao chefe, então, pareceu promissor. Como não era de sua alçada, o massacre que resultou em 56 mortes no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus (AM), não deveria fazer parte de suas preocupações de chefe da Nação, até porque se dissolveria em urina em poucos dias. O presidente ficou quatro dias sem abrir o bico até que, pressionado pelas evidências de que tudo o que acontece neste país em crise lhe diz respeito, tentou safar-se aplicando o golpe do pai dos burros. A tragédia virou o eufemismo “acidente pavoroso” e todas as providências para enfrentá-la foram transferidas para seu factotum Alexandre de Moraes, o mais boquirroto dos ministros que ocuparam o Ministério da Justiça, a mais antiga e até pouco tempo atrás a mais venerável pasta da República.
No 11º dia, contudo, Sua Excelência fez seu gesto de contrição de hábito, promovendo eufemismo a contorcionismo retórico, comum em seu dialeto particular de apostos e mesóclises: “matança pavorosa”. Sua Excelência nem foi a Manaus, nem a Boa Vista, Roraima, onde a urina prevista pelo providencial conselheiro foi inundada pelo sangue de 32 vítimas da vingança “malígrina” do PCC. Antes que a primeira quinzena de janeiro passasse, entre notícias de fugas de presídios em Minas Gerais e no Paraná, mais mortandade foi perpetrada na Penitenciária Estadual de Alcaçuz e no Pavilhão Rogério Coutinho Madruga, usado como “cadeia pública” de Natal. O sangrento episódio ocorreu no município de Nísia Floresta, abreviação do pseudônimo Nísia Floresta Brasileira Augusta, pelo qual se conhece a potiguar Dionísia Gonçalves Pinto, educadora, poetisa e escritora, cuja obra mais conhecida é Opúsculo Humanitário, coletânea de textos em defesa do feminismo. Os presídios, a 35 quilômetros da capital do Estado, ficam no mesmo território municipal que Búzios, conjunto de praias paradisíacas, destino turístico da zelite branca, que Lula abomina.
Metáforas opostas – Inferno de Dante e Paraíso de Milton – ali têm muita proximidade. Se há poucas praias lindas como as de Nísia Floresta, seus presídios são a mais completa tradução do inferno presidiário nacional, que Temer insiste em desconhecer. Mesmo comparada com o caos nacional, a situação local é ainda mais insegura e deplorável. É o que a ocorrência delata na precariedade do lugar que abriga condenados a penas leves e membros das 27 facções do crime organizado, relatadas em excepcional reportagem que serviu de manchete ao Estadão no sábado passado. Basta seguir o relato deste jornal: seis membros do PCC, egressos do Pavilhão, invadiram o depósito de armas, pularam o muro de Alcaçuz e lá mataram e degolaram os inimigos do Sindicato RN, que nele viviam e dos quais eram mantidos isolados. À falta de semoventes adequados, vários corpos, todos decapitados e alguns esquartejados, foram transportados em caminhonetes abertas e o governo teve de alugar uma câmara frigorífica para acomodá-los. Não há um Instituto Médico Legal no Rio Grande do Norte. Os exames foram, então, assumidos pelo diretor do Instituto Técnico de Perícia (Itep), na zona portuária de Natal, cidade usada como base pelas tropas americanas para atravessar o Atlântico na 2ª Guerra Mundial. Foram solicitados peritos do vizinho Estado da Paraíba.
O governador potiguar também tomou emprestado dos vizinhos paraibanos o secretário estadual de Segurança Pública, Walber Virgolino da Silva Ferreira, cujo nome próprio invoca o mais célebre facínora do banditismo nordestino, Virgolino Ferreira da Silva, Lampião, o Rei do Cangaço. O delegado de carreira da Polícia Civil do Estado vizinho, contudo, jamais se perderá pelo segundo prenome e pelos dois sobrenomes invertidos. Suas declarações sobre o morticínio justificam essa assertiva.
A seu ver, a ação policial de reação ao massacre foi “um sucesso”, de vez que as populações das redondezas não foram perturbadas pela fuga de nenhum presidiário. Antes que alguém o acusasse de ter deixado o “pau comer”, como diz a gíria da região, dentro do presídio, fiel àquele ditado de que “bandido bom é bandido morto”, ele logo esclareceu que o total de mortos poderia ter sido muito maior. Diante da evidência de que o controle das duas prisões pelos presos durou 14 horas (entre a tarde de sábado 14 e a manhã de domingo 15), o delegado nos ensinou que “é muito difícil evitar” a morte de detentos em presídios. O policial recusa-se ainda a declinar as denominações das facções, embora admita que o incidente fora causado pela guerra entre elas. Não esclareceu se faz isso por intuição, superstição ou por convicção, acreditando que tornando seus nomes notórios “estaria dando-lhes cartaz”, ensinamento aprendido do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e seguido à risca pelo atual ministro da Justiça.
Desta vez, Michel Temer pronunciou-se assim que soube do recente “acidente”. Não falou à Nação, não viajou para Natal, não saiu de casa, mas pontificou – como, a exemplo de Donald Trump, tem feito em seu perfil pessoal no Twitter, tardia manifestação de adolescência aos 76 – que acompanha a situação do presídio de Alcaçuz. E também que encarregou seu ministro pra toda obra, Alexandre de Moraes, a prestar “todo o auxílio necessário ao governo do Estado”, sem declinar a qual se referia entre os 27 existentes.
Moraes atendeu ao pedido do governador, autorizando que parte dos R$ 13 milhões do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), liberados em 29 de dezembro de 2016 “para modernização e aquisição de equipamentos, seja utilizada em construções que reforcem a segurança no presídio”. O ministro da Justiça também agradeceu, em nome de Temer, “o empenho das forças policiais que atuaram em defesa da sociedade, evitando fugas e controlando a situação”. Em nota oficial, este contou também que falou com o governador Robinson Faria, que agradeceu o apoio da Força Nacional (FN) que está no Estado desde o ano passado, e autorizou que esta fique mais 60 dias em território potiguar. Esqueceu-se de contar pra quê. Afinal, a FN estava lá e sua presença não evitou que o inferno avisasse que fica bem perto do paraíso tropical da praia de Búzios.
A matança em Alcaçuz esclareceu ao distinto público pagante deste país dos insensatos que o inferno fica ao lado do verão ao mar e que tudo o que pode ser feito é exatamente o que não foi feito e de nada adiantou.
Em tempo: se Temer não foi a Natal, seu ministro e feitor também não foi.
*Jornalista, poeta e escritor