O presidente do Superior Tribunal de Justiça alegou razões humanitárias para soltar Fabrício Queiroz. Na decisão, João Otávio de Noronha se revelou um juiz compreensivo com o faz-tudo da família Bolsonaro. Tão compreensivo que estendeu o benefício à mulher dele, então foragida da polícia.
O habeas corpus para Márcia Aguiar espantou até os colegas do ministro, por quem o capitão já declarou ter sentido um “amor à primeira vista”. A senhora não estava no grupo de risco da Covid-19 e mantinha contato frequente com milicianos. Noronha considerou, no entanto, que sua presença ao lado do marido era “recomendável para lhe dispensar as atenções necessárias”.
Além de ser premiada pela fuga, Márcia foi promovida. Numa canetada, passou de cabeleireira a enfermeira. Agora ela aproveita as tardes para se bronzear na varanda de casa. Sem o incômodo de vestir trajes de hospital.
Animado com a generosidade de Noronha, o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos resolveu bater à porta do STJ. O grupo pediu a soltura de todos os presos provisórios que pertencem ao grupo de risco e não foram acusados de crimes com violência ou grave ameaça.
No pedido, os advogados escreveram que negar o habeas corpus a “presos em idêntica situação” a Queiroz significaria “violar o direito à igualdade”. Eles argumentaram que “beneficiar apenas alguns investigados e réus ricos, amigos de poderosos”, demonstraria “inaceitável seletividade” da Justiça. Parecia um presságio do que estava por vir.
A soltura de Queiroz e sua esposa reflete a seletividade da Justiça
O ministro Noronha havia preenchido 11 páginas com citações e teses jurídicas para tirar Queiroz da cadeia. Ao negar o mesmo benefício a presos anônimos, só precisou de uma página e meia.
Ele alegou que o novo pedido não especificava a situação de cada um dos presos. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal não viu problema nisso ao conceder habeas corpus coletivo a grávidas e mães de crianças de até 12 anos que estavam em prisão provisória.
Noronha também reclamou que os advogados teriam feito uma “alegação genérica de que os estabelecimentos prisionais estão em situação calamitosa”. Foi exatamente o que ele fez ao libertar Queiroz e a mulher. Sua decisão cita “presídios cheios”, “casas de detenção lotadas” e “higiene precária”, embora o operador da rachadinha estivesse a salvo disso tudo em Bangu 8.
O ministro ainda gastou latim (“fumus comissi delicti”, “periculum in libertatis”) para negar o pedido do coletivo jurídico. Com isso, manteve na cadeia milhares de idosos, cardíacos, diabéticos, tuberculosos e hipertensos que não têm um amigo no Planalto.
A professora Eloísa Machado, da FGV Direito São Paulo, diz que o contraste entre as duas decisões de Noronha escancara a seletividade da Justiça. “É um descalabro. Isso põe na lona a credibilidade do ministro. Ele negou a liminar porque os demais presos não são Queiroz”, resume. Ela é uma das signatárias dos dois habeas corpus coletivos: o das grávidas, concedido pelo Supremo, e o dos presos no grupo de risco da Covid-19, negado pelo STJ.
Até sexta-feira, o Ministério da Justiça contava 72 presos mortos pelo coronavírus no país. Faltava um detento para o sistema carcerário atingir a marca de dez mil infectados.