Uma concebe as melodias, a outra, as palavras. Assim brota a música de Anna Paes e Iara Ferreira. Nessa parceiragem, que rima com camaradagem, elas se deram ao êxtase da criação. Mulheres musicais, camaradas nos vocais, delas nascem canto e ritmo, verso e rimas
Elas que, se as rádios não fossem tão seletivas na mediocridade, certamente ouviriam o locutor, com a voz empostada de FM, anunciar: “Ouviram, de Paes e Ferreira, a música mais tocada da semana…” Perdoe-me a “viagem”, leitor, mas é que às vezes é preciso sonhar com situações tão desvairadas quanto imprescindivelmente necessárias.
Paes e Ferreira, provavelmente, nunca tocarão nas rádios. Talvez, com sorte, toquem naquelas que são a exceção da regra. Sendo assim, a política de excluir um gênero musical em detrimento de outro, eleito draconianamente pelos programadores das rádios, impede que o brasileiro tenha acesso à toda diversidade da música brasileira.
Anna Paes e Iara Ferreira lançaram Miragem de Inaê (Biscoito Fino). Lá estão suas parcerias: em quatro, as duas dividem o canto; em duas, Paes sola; em três, os solos são de Ferreira.
Os versos de Iara, carregados de brasilidade, têm frescor, como os de “Iyá Omo Mesan, Eparrei Iansã”. As melodias e as harmonias de Anne, nitidamente inspiradas em Guinga – bom gosto que, por si só, lhe antecipa crédito – são criativas.
Impressiona como as vozes delas são parecidas. Talvez uma com a voz um pouco mais nasalada do que a outra; talvez o jeito de dividir as frases tenha uma certa parecença. Mas, de um modo geral, elas são igualmente afinadas, assim como delicados e afetuosos são seus timbres e suas dicções.
Anna Paes e Iara Ferreira
Poderão se tornar boas intérpretes de canções alheias? Bem, para isso, talvez seja prudente elas avaliarem um pouco mais as qualidades vocais que têm. Pois, por mais suaves e agradáveis que sejam suas vozes, numa avaliação mais rigorosa as duas podem ser vistas como vocalmente aquém de algumas cantoras que atualmente estão no mercado.
Entretanto, tudo o que foi dito acima perde sentido se o intuito delas for levar a parceria à frente, limitando-se a gravar apenas o que criarem: aí não há dúvidas, elas já são excelentes intérpretes de suas próprias composições.
O que também chama a atenção é a excelente qualidade dos profissionais envolvidos no processo de criação do álbum, como o cavaquinhista e arranjador Jayme Vignoli (diretor musical do trabalho) e Carlos Fuchs (mixagem e masterização). Bem como os convites feitos ao Quarteto Maogani para tocar o belo “Réquiem Para os Vinte Anos”; a Paula Santoro, para interpretar “Miragem de Inaê”, música com grande extensão melódica que criou dificuldades para a cantora atingir as notas mais agudas e as mais graves; e a Guinga, que arranjou, tocou violão e dividiu o canto com Anne na belíssima “Valsa de Aprendiz”.
Miragem de Inaê é um belo álbum autoral de duas mulheres que se entendem e se fazem ouvir através da música que tão bem compõem.
Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4