Muitos críticos desconhecem as sementes do ramo geracional dos evadidos das fazendas
“Reinações de Narizinho” foi o livro que inaugurou minha vida de leitor e, agora, a alegria de saber do relançamento em edição preparada por Marisa Lajolo provocou retomadas. Eu era garoto ainda e encantado fiquei com as aventuras de Lúcia, a menina “cor de jambo”, moreninha, como moreninho foi Lobato, neto bastardo da ex-escrava Anacleta do Amor Divino, amante do galhardo Visconde de Tremembé. Desde aquele então, nunca me separei de Lobato e adulto tenho voltado a ele não apenas como leitor constante, mas também arriscando análises curtidas em instruções históricas, valeparaibanas. Ninguém viveria impunemente o esvaziamento declinante das vastas fazendas de café e as derrocadas das cidades por ele condenadas como “mortas”. Ninguém.
Primeira leitura de JC Sebe Bom Meihy
Emoldurando Lobato em um quadro de classe social sem saídas fáceis, parece fundamental entender as razões do jovem rapaz formado antes de se mudar para São Paulo e de publicar o conto “Ideias de Jeca Tatu”, em 1918. Num lance geral, resenhando os muitos livros sobre ele, sinto falta de exames de seu perfil talhado na cultura valeparaibana. De modo geral – com raras exceções – tudo é mostrado como se Lobato já nascesse adulto, brasileiro nacionalista, sem ser credor de um caipirismo de garras cravadas em sua história pessoal, familiar e em contexto específico. E explica-se isso, pois, a reputação de personagem público cresceu na surdina de seu jeito de se mostrar, sem revelar a sombra alongada de suas origens. Monteiro Lobato soube contornar o legado “neo-caboclo-empresário” e deixou-se exibir metido a burguês, mais exibido como neto do Visconde do que da avó negra. E como adentrar em seus escritos sem tais considerações?
Historiador de ofício, taubateano crônico, sinto-me convidado a repensar os fundamentos da geração do jovem Lobato como expressão daquela elite do Vale do Paraíba Paulista. Remeto-me assim a um grupo que, internando frustrações econômicas, se posicionou desajeitado na modernização do mercado nacional capitaneado por São Paulo. Condenar o campo e elogiar o sucesso permitido pelos imigrantes, maldizer a agricultura e exaltar a máquina, desprezar o caipira em favor do operário, o obrigou a, despreparado, se fiar na talagarça do capitalismo ascendente. E Lobato se perdeu no bordado do tempo moderno e modernista. Sob o signo forçoso da busca de espaço social, a trilha possível o obrigou a ajustes nem sempre bem sucedidos ou, pelo avesso, em diversas ocasiões mal resolvidos.
Desde jovem, Lobato buscou ajustes nem sempre bem sucedidos ou até mal resolvidos
A sequência de algumas derrotas econômicas explica mais do que as falências nos negócios, certo ardor por delírios que o alucinaram desde sempre: fabricar doces em compotas, ter restaurante em Nova York, publicar livros comestíveis. Desatinos de um caipira que sonhou ser empresário e que, por força de um destino torto e de difícil justificação, acabou por ser nomeado “adido comercial do Brasil” em missão oficial do governo, nos Estados Unidos.
A formulação da hipótese que sustenta explicações de Lobato pelo legado da cultura valeparaibana reponta como dupla crítica historiográfica, ambas ácidas. A primeira se ampara na não existência de vigorosos estudos regionais, valeparaibanos, capazes de exponenciar os desafios vigentes em uma parcela da elite que se fez, no começo do século XX, aflorada do mundo do café. Além desse argumento, o segundo perfilhamento crítico remete aos estudos que projetam interpretações vistas “de fora”, de segmentos que desconhecem as sementes do ramo geracional dos evadidos das fazendas. Assim, cabe propor a provocação desse legado cultural nas alternativas econômicas e nos textos críticos e literários do “taubateano rebelde”. A fim de valorizar tal argumento, convém retraçar o jovem advogado: educado em Taubaté, promotor público em Areias, SP, constituindo família no Vale, e depois fazendeiro em Buquira até 1917.
Preso em 1941 por acusar o Conselho Nacional do Petróleo de defender empresas estrangeiras
Consequência do insistente apagamento dessas influências pretéritas, o que se tem é um cacoete analítico que orienta a leitura de Lobato como empreendedor intrépido, uma espécie de baluarte da modernidade industrial, entranhado escritor nacionalista, isso e muito mais, tudo sem avaliar as frustrações que lastrearam seus fracassos sucessivos no mundo dos empresários. Em complemento, seu sucesso literário também não se faz acompanhar de fatores de sua história pessoal, de toques do trato comum aos subalternos do Vale, por exemplo, característica de um mundo frustrado, recém saído da escravaria. Pelo contrário, aliás, o incessante enquadramento nas teorias do tempo mais perturba do que esclarece. E reduz tudo a simplismos exagerados.
O resultado de montanhas de estudos sobre Lobato sem seu passado caipira tem proposto dilemas que complicam sua apreensão hoje. A retomada do jovem Lobato, por sua vez, demanda exercitar a inevitabilidade do vínculo autor/obra em seu contexto imediato, preso ao andamento da produção dos escritos considerados em sua carga de valores. No galope de apagamentos, o que submerge é a potência das tradições incorporadas nas expressões de um autor que nunca deixou de ser valeparaibano. Talvez a incapacidade de Lobato de se livrar do remoto passado explique as experiências que tentou ao longo de suas andanças recheadas de vulnerabilidades: monarquista, comunista, georgista, taylorista… Eugenista num tempo, espiritualista em outro, Lobato provou de tudo, tudo, sem jamais deixar de ser um caipira no mundo que se movimentava além de seu eixo de controle. Só é possível entender Lobato se o considerarmos um ser em processo de “descaipirização”.