Barack e Michelle Obama atualizam famoso slogan de campanha para Kamala: ‘Yes, she can’
Depois de um dia penoso, desses que merecem ser esquecidos, exausto, mas sem sono, resolvi organizar alguns papeis (boletos, informações do condomínio, notas gerais) e para aliviar o estresse liguei o rádio. Busquei uma estação adequada e logo cheguei a um canal de “música lenta”. Confesso, senti alívio até porque de quando em vez tocavam boleros antigos. Ah, como gosto de boleros! Tudo ia bem até que ouvi “Reloj” na voz do inesquecível Lucho Gatica. Transportado, me vi enroscado na estrofe “Detén el tiempo en tus manos/ Haz esta noche perpetua/ Para que nunca se vaya de mí/ Para que nunca amanezca” e a frase tema me parecia uma sentença “Reloj no marques las horas”.
Parei para pensar… E dei estrada para uma questão que tem se tornado capital em minha consideração: o que tenho feito com o tempo e, principalmente, chegada a velhice, como aproveitar melhor tudo e dar um acabamento adequado à minha experiência neste plano. E “bolerei” minha dúvida em conversa com um relógio suposto: valeria parar o tempo “para que nunca amanezca”? Valeria?
O chileno Lucho Gatica revolucionou a forma de cantar bolero
E assim notei que agosto começa a preparar a roupa de fim de ano e que os dias se consomem corroendo nossa existência. Parei um pouco, desliguei o rádio e comecei a desfibrar meus últimos dias e noites. Valeria parar o tempo? Sabe, meio perplexo precisei me dar satisfação e, assim, tive que fabricar explicações sobre coisas que tanto me implicam nas eleições norte-americanas. Meu Deus, o que tenho a ver com isso? Como e por que tanto me afeta algo tão distante e fora de meu alcance? Se fosse no cenário político brasileiro, claro, faria sentido, mas porque tenho lido sobre aquele evento e gastado noites caçando informações referentes ao drama de Joe Biden, tomando partido dos Democratas, torcendo contra o Trump. Por quê? É claro que sei da importância dessas eleições para o mundo todo, mas nunca me empenhei com tanto ardor.
Na verdade, há três noites não durmo direito. Seja por qual for o motivo diretor, senti-me presente na convenção do Partido Democrata em Chicago. Fiquei tão à vontade e animado que me vi eufórico como se estivesse numa festa de aniversário de ente querido. Os aplausos a Kamala funcionaram como trilha para as lágrimas que rolaram soltas. Pode? Noveleiro que sou, transformei o roteiro da Convenção estadunidense em uma espécie de melodrama consequente. E no enredo imaginário, elenquei a situação do atual Presidente como um vovozinho convidado a voltar para a casa e descansar. Sim, vi Biden como alguém que sai de cena menos como Rei Lear, de Shakespeare, e mais como o personagem de James Goldman n’“O Leão no Inverno”, tal um novo Henrique II da Inglaterra que, envelhecido, posicionou-se triunfal, apesar de todos os conflitos, intrigas e da idade. E gastei alguns segundos olhando o Presidente se despedir da carreira com aquele andar de quem muito andou.
ScreenshotHá, contudo, mais personagens nessa trama pós-moderna. Barack Obama, por exemplo, reponta como herói negro numa nação racista e excludente, ainda que a cultura norte-americana se diga defensora das oportunidades. Sua esposa, Michelle, brilhou ainda mais, pois sendo mulher demonstra a vitalidade de quem luta contra camadas de preconceitos. Talvez a tradição cinematográfica norte-americana tenha influenciado na montagem teatral da cerimônia de indicação oficial da arrebatadora Kamala que, com sorriso aberto, franco e jeito de vizinha do lado, se apresentou glorificando a possibilidade novos ares. E lá estava a filha de imigrantes, meio afrodescendente, meio indiana, dona de palavras certas e certeira na disputa remoçada.
Arrumados os elementos da equação pude entender que o evento promoveu a soma do otimismo com a redefinição do conceito de liberdade democrática, e acenou com a alegria de novos tempos. E o contraste ficou mais definido. Do outro lado, o velho que não quer sair da cena e que mente, grita, xinga, ameaça com armas e jura fazer a “América grande outra vez”, exatamente a América dos brancos, imperialista, e dona de políticas limitadoras do sucesso externo.
Pois é, na tradução do atual momento norte-americano entendi o meu instante pessoal. Minhas contas continuarão chegando, os problemas imediatos seguirão seus atalhos, as tensões internas se energizarão, mas, a par de tudo isso espero que caras novas surjam estampando possibilidades necessárias lá e cá. E então, que a hora marcada pelo relógio da esperança detenha o tempo de fermentação e que só solte seus ponteiros quando estiver pronto para despertar uma nova era. E que a democracia seja legítima como o sorriso de Kamala “para que siempre amanezca”.