Admirado por uns e detratado por outros; sempre reverenciado e/ou maldito, Lobato é dos autores mais comentados da fortuna crítica nacional. E nem seria exagero dizer que não há meio termo: amor ou ódio. Seja por sua obra ou pelas atitudes públicas que assumiu, difícil achar uma antologia ou análise panorâmica da cultura brasileira que não o mencione. Os que o querem bem promovem uma chuva abençoada, versando sobre a vasta produção, provocante sempre, e retomada por gerações. Os que o detratam recorrem a aspectos ligados ao racismo e indefinições políticas, ao aludido machismo e defesa de uma elite indecisa entre a tradição e a modernidade.
A pesquisa “Retratos de Leitura no Brasil”, considerando o ano de 2020, revela que depois de Machado de Assis (1839 – 1908), Monteiro Lobato (1882 – 1948) é o autor mais lido e comentado entre nós. O perfilamento de ambos se mostra convite aberto a aproximações, e assim, considerando que Lobato se projetou depois de Machado, pergunta-se do impacto deste sobre aquele. Autores como José Montello, Geovana Gentili Santos, Regina Helena Pires de Brito, entre outros, garantem retumbante “sim”. Na conveniência do questionamento, contudo, algumas questões perturbam a lógica linear e convocam medidas sobre o grau e intensidade da projeção de Machado sobre lobato.
Como demonstra Camila Spagnoli, são fecundas e precoces as citações de Lobato sobre Machado, mas há sutilezas. Partamos do suposto que a alentada correspondência de Lobato para Godofredo Rangel contida nos dois volumes da “Barca de Gleyre” é uma seleção que, mesmo fragmentada, permite ver além de lances analíticos importantes da personalidade de Lobato. Tudo no afã de humanizar o escritor sempre visto como homem público, valente defensor de causas nacionais. Por outras cartas, menos oficializadas, nota-se um cidadão menos público, muito mais doce e afável, alguém capaz de torcer a realidade para agradar.
Para a pesquisadora Camila Spagnoli, há sutilezas nas citações de Lobato
No caso específico da percepção de Lobato sobre Machado, há algumas peças que revelam usos diversos do juízo lobateano sobre o Bruxo de Cosme Velho. Convém prudência no exame que, aos desprevenidos, pode parecer contraceno ou contradição.
Nas cartas para Rangel, desde 1903, logo no início da correspondência, Lobato exaltava Machado conclamando-o como maioral de nossa literatura. E são exaustivos os elogios como os contidos em missiva de 14/08/1909 onde se lê:
“Machado de Assis é o mais perfeito modelo de conciliação estilística; seu classicismo transparece de leve e nunca ofende os nossos narizes modernos. Como vivemos neste século e neste continente, não podemos, sem uma hábil e manhosa tática, usar expressões lusitanas e de tempos já muito remotos.”
Em termos definitivos, contudo, a grande manifestação de Lobato sobre Machado se deu pela encomenda de artigo solicitado pelo jornal argentino “La Prensa”, em 1939, ocasião do centenário de Machado. Nesse texto, Lobato se derrama em elogios que padecem de filtros se comparado com uma outra carta, esta dirigida à jovem Regina, filha do amigo queridíssimo, Lino Moreira. Em linhas ternas, com contundente objetividade, Lobato critica a moça postulante a contista. A estratégia lobateana estabelecia uma comparação entre o jovem Machado e o maduro e consagrado escritor. A revelação é espantosa, disfarçando o apreço desmedido pelo Bruxo. Vejamos os seguintes dizeres:
“Tive encomenda da Argentina dum estudo sôbre Machado de Assis, cujo. centenário vai ser comemorado em abril.
— Machado de Assis? Quem será?
Fui a uma livraria.
— Tem aí obras dum tal Machado de Assis?
O caixeiro arregalou o ôlho.
— Claro que temos, respondeu.
— E presta, êsse autor? Vale a pena?”
De maneira didática, tentando animar a autora que teve o conto reprovado com solene “não presta”, Lobato se mostra suavemente crítico.
“Afinal voltei para casa, resmungando, com meia dúzia dos volumes do tal Machado de Assis, uns da sua primeira fase, uns da fase de apogeu, e outros do período final post-Carolina. E pus-me a ler, E espantei-me de como êsse escritor começou bestamente em seus primeiros romances; e como foi ascendendo, como foi se desmulatando, como ficou maravilhoso nos contos da maturidade, nas “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, em “Quincas Borba” e em “D. Casmurro.”
Nem parece o mesmo Lobato, aliás, pode-se dizer que não é mesmo, pois um é o senhor da crítica literária, o capitão empreendedor que falava de ferro e petróleo, o editor bandeirante, e, bem diferente, o outro espécie de padrinho de uma autora iniciante.
São plurais as possibilidades de conclusão: uma remete aos fundamentos das cartas afetivas como atestado de intimidades; outra, segunda alternativa sugere a diferença entre as missivas espontâneas e as, como a série da “Barca de Gleyre”, reeditadas, “pousadas”, aprumadas para um público amplo. Há outras visões, menores, por sugerir um Lobato cínico, mentiroso e contraditório. Caso opte-se pelo olhar humano, contudo, tem-se um Lobato mais doméstico, amigo a ponto de criar uma outra realidade para se manter leal a seus valores.