Sina de cronista é buscar novidades nas coisas simples e corriqueiras; é recriar belezas onde elas se escondem; é tirar do rotineiro risos, lágrimas, perplexidades. Sim, tudo isso e mais algumas coisas, mas, pergunta-se, o que acontece quando a cisma manda escrever sobre mães no dia dedicado a elas? Paradoxo: ao mesmo tempo é coisa difícil e coisa fácil.
Difícil ser original, fazer conexões, combinar palavras dignas de um sentimento universal, quiçá o maior de todos. Muitos decantaram em versos a saudade e o reconhecimento, e, então, como marcar a data? Reverso disso, é fácil pensar na piedade de leitores que na junção de três letras “m-ã-e” perdoam a carência de inovações, viram a página das mal traçadas linhas com compaixão e, derretendo-se de empatia, se compadecem da boa vontade do cronista pretensioso. Então, como ficamos? É irresistível pensar na homenagem, imperdoável deixar a data sem mencionar afetos eloquentes, passagens amorosas.
Deixei as horas rodando seus ponteiros e fiquei em busca de inspiração. Por natural, lembrei-me de minha mãe e até elegi momentos especiais: o bolo azul de meu aniversário de 10 anos; o choro quando se despedia de mim no colégio interno; o beijo público que me deu quando ganhei prêmio de redação no ginásio; a carinha inconformada quando decidi, aos 15 anos, sair de casa e morar em uma pensão… Ladainhei momentos de febre quando carinhosamente ela fazia suco de uvas que eu tanto gostava; os apoios quando todos – inclusive ela – eram contra minhas iniciativas sempre distantes da vontade familiar; a insistência para que tomasse cuidado com tudo – “pegou o casaco”, “tomou o remédio”, “não volte tarde”, “leve a chave” – sabe aquela lenga do “preste atenção”, “seja educado com os outros”… Eram tantos os detalhes que uma só crônica seria insuficiente e por demais pessoal.
Alice Ruiz: “…um corpo comporta outro corpo”
Mãe é mãe e o desejo ardente de homenageá-la demandou teimas que permitiram a busca de poetas que se dedicaram passagens à essa missão filial sempre necessária e oportuna. E assim outra epopeia se abriu: como escolher? Como perfilar Bilac, Machado, Drummond, Cecília Meireles, Mario Quintana, Adélia Prado, Cora Coralina? São tantas as menções de filhos para mães, e de mães para filhos, que precisei elaborar uma estratégia capaz de me redimir: recortar trechos de poemas alheios e emendá-los do meu jeito como se fossem versos meus, de um filho premido pelo desejo de um beijo agradecido. Tecnicamente, esse recurso leva o nome solene de “bricolagem”, ou seja, o reuso de materiais feitos para fins específicos. E me autorizei a ousadia porque consagro supostos baseados na memória coletiva que me absolve “pelo amor de mãe tudo vale”, e comecei por Alice Ruiz que cunhou uma explicação sintética e convincente sobre o poder do ventre materno
“Depois que um corpo
comporta
outro corpo
nenhum coração
suporta
o pouco”
Coisa profunda, né? Poderosa! A rima rica entesoura um conteúdo arrebatador. Um corpo comportando outro corpo, gerando a vida, é a multiplicação que leva pensar na compensação sempre inalcançável: jamais superaremos o amor materno e tudo mais vira pouco, parco, fica incompleto.
- Paulo Leminski: “…e tudo se obedecia”
E juntei esses versos a um outro, a um poeminha de Paulo Leminski, o doido curitibano demolidor de mitos que versejou delicadamente, como se fosse um devoto menino-santo:
“Minha mãe dizia:
– Ferve, água!
– Frita, ovo!
– Pinga, pia!
E tudo obedecia”
Sim, o poder das mães em transformar dá a dimensão do teor de mudança, e o exemplo materno mostra isso na dimensão cotidiana, das matérias elementares, da obediência, mas tudo, pelo poder delas. É claro que todos temos o pendor das mesmas alterações de estado do ovo, da água, e de fazer a pia pingar, mas o comando materno plenifica tudo de um jeito diferente que matiza o poder pelo afeto: tudo segundo as ordens de “minha mãe”.
Sérgio Caparelli: “…teu nome […] na palma da minha mão”
Mas foi Sérgio Capparelli quem permitiu o arremate dos recortes anteriores. Ao dizer
“ teu nome eu trago, mãe,
na palma da minha mão.”
O poeta indica o segredo pessoal do reconhecimento da gratidão. Na “palma de minha mão” reside o teor da vida filial que pode carregar eternamente a delícia do reconhecer. E que lindeza ler na mão de quem se permite a capacidade de olhar a mãe pessoal como se fossem todas as outras, como se os poeminhas fossem escritos para cada uma e cada filho virasse poeta ladrão perdoado por saudar na sua a mãe coletiva.