Estudantes de Hong Kong mostraram que o poder não pode tratar os cidadãos como um pedacinho de palha, sem força
‘O que eu fiz foi imperdoável… ter mergulhado a cidade neste imenso caos é imperdoável”. Estas palavras foram ditas na segunda-feira passada por Carrie Lam, chefe do governo de Hong Kong. Ela queixou-se de estar duplamente espremida: pela guerra comercial entre os EUA e a China e pelos “dois senhores” a quem deve servir: o governo de Pequim e o povo de Hong Kong. Lam tem razão — a cidade está perturbada: num turbilhão, manifestações se sucedem desde começos de junho. O estopim da crise foi o envio ao Parlamento local, em fins de maio, de uma lei autorizando a extradição para a China continental de criminosos comuns solicitados por Pequim. Os termos do projeto, porém, eram vagos, permitiam a deportação de quaisquer críticos do regime comunista.
Em 6 de junho, dois mil advogados protestaram em público, vestidos de preto, em silêncio. Era preciso manter os termos do Tratado de 1997: um país, dois sistemas. Três dias depois, uma grande passeata encheu ruas e avenidas, e aquela proposta deveria ser retirada. Começou uma queda de braço. A repressão atacou com brutalidade: gás, porretes, jatos de água e prisões. Aqueles “desordeiros” pagariam caro. Os manifestantes não se intimidaram — dispersavam-se e voltavam a se reunir em outros lugares. Para se proteger das balas de borracha, passaram a aparecer com o corpo coberto, máscaras contra gases, óculos escuros, capacetes de motociclistas. Corriam em zigue-zagues, invadindo estações do metrô, paralisando os trens, evitando confrontos. Quando podiam, pegavam os policiais de jeito, as pedras voavam, acompanhadas pelos coquetéis molotov, temíveis, quando bem lançados. O mês de junho foi um sufoco. Era apenas o começo. O governo fez uma primeira concessão: suspenderia o envio do projeto. Nada feito. Ele teria que ser retirado. Nessa altura, a mídia internacional apropriara-se do processo, e o mundo tomava conhecimento daquelas inconveniências. Trump sugeriu que os governantes chineses fossem conversar com os manifestantes. Como se ele próprio tivesse este hábito. Pequim não deu ouvidos: o projeto seria mantido.
Em 1º de julho, as gentes, ousadas, tomaram de assalto o Parlamento local. Em meados de agosto, milhares de jovens irromperam no aeroporto internacional, forçando a suspensão dos voos. Já se contam 1.183 prisões, mais de cem indiciamentos, além de incontáveis feridos e nove suicídios. Todavia, as passeatas não esmorecem. No último fim de semana, o pau voltou a quebrar feio. Os policiais, como gatos grandes, as garras terríveis, fazem o possível para pegar os jovens, como ratos rápidos, apoiados pela população. Apareceram filmes mostrando manobras militares, recordando que o Exército chinês se encontra a minutos da cidade rebelada. A Agência oficial anunciou, sibilina, que “o fim está próximo”. Surgiu o fantasma da Praça da Paz Celestial e do massacre de junho de 1989. O governo de Pequim voltaria a golpear? Vozes moderadas recusaram a possibilidade, mas, considerando-se a folha corrida do governo chinês, a hipótese não pode ser excluída.
Joshua Wong, um dos líderes dos protestos
A boa notícia é que as autoridades decidiram retirar o projeto que originou os conflitos. No entanto, Joshua Wong, um dos líderes dos protestos, respondeu que a concessão “não era o bastante e vinha muito tarde”. Outra líder, conhecida como Miss Cham, foi mais incisiva: “é um esparadrapo numa gangrena”. Eles exigem mais quatro pontos: a formação de uma comissão independente para investigar a violência policial; anistia geral para os envolvidos nas ações; que o governo não mais os chame de “desordeiros” e o sufrágio universal para a eleição do governo da cidade.
É improvável que Pequim aceite o programa. Abriu-se, entretanto, um campo de diálogo a ser aproveitado. Os estudantes tiveram uma grande vitória. Como diz um provérbio chinês, mostraram que o poder não pode tratar os cidadãos como um pedacinho de palha, sem força. E evidenciaram algo recordado há dias por Franklin Martins e muito inspirador: quando as pessoas não temem, as tiranias ficam pequenas.