Na alvorada da década de 1950, um livro escrito por um jornalista respeitado, Viana Moog, se propôs a explicar nossa realidade até aquele então. Sob o título de “Os dois Brasis”, o autor resumia o resultado de anos de contraste entre o norte e o sul, o litoral e o interior, a cidade e o campo. Tudo seria polarizado no claro x escuro, no certo x errado, no progresso x tradição. E o livro prosperou como verdade repetida até protestos que tanto mostravam a unidade inerente das partes como relativizava os extremos. Desse denso debate emergiram teorias que qualificam nossas características para além dos jogos duais. O Brasil é uno, culturalmente auto explicado pela diversidade expressa em muitos níveis de nosso comportamento. Passado o tempo, situações multiplicadas têm proposto experiências que ainda chocam e que, de maneira sutil, convocam as velhas propostas de Moog. O turismo e os negócios colocam em cheque essas teorias, e, em vista dos resultados sempre chocantes, ainda são clamados argumentos que testem situações que, na prática, justificam o julgamento dos “Dois Brasis˜.
Vianna Moog, um dos intérpretes do Brasil
Pela segunda vez, recentemente cumpri situações de trabalho no interior nordestino. Convidado pela Universidade Federal de Campina Grande para conferência em Cajazeiras, no semiárido paraibano, pude também participar de programa de treinamento de jovens pesquisadores. Preocupado com o implemento de uma “outra história” ou da “história vista de baixo”, faço parte do grupo interessado em ver outras versões do passado, em particular das percepções não oficiais ou oficializadas. Nesta linha, as experiências do cangaço se mostram como fontes ricas. Tudo, porém, começou antes, no Rio de Janeiro.
Preocupado com programas de atendimento a migrantes nordestinos, a Cúria Metropolitana iniciou vasto programa de assistência aos recém-chegados, em particular àqueles que não possuem apoios. A busca de opções de trabalhos levou à verificação de que existe um bolsão de trabalho dominado por nordestinos: as portarias e zeladorias de prédios. Feito levantamento, constatou-se que mais de 90% dessas funções são exercidas por tais migrantes e seus filhos, parentes ou amigos. A questão que se levanta diz respeito às razões de tais postos.
Bando de jagnços de Virgulino Lampião
Sob a chave de um procedimento conhecido como “história oral de vida” foram feitas 50 entrevistas de sondagem. Logo se constatou que essa manifestação se originou na década de 1940 quando empataram duas manifestações: uma ligada a onda imigratória de 1942, ocasião de grande seca; outra, a multiplicação de edifícios destinados à nova classe média, em particular nas grandes cidades do sudeste, exatamente as que mais recebiam esses deslocados. Decorrência mecânica de tais constatações, surgiu a pergunta fatídica: mas porque os nordestinos se no Rio de Janeiro, como em outras capitais, existiam bolsões de pobreza local, em particular com negros que compunham contingente de baixa renda? Novas levas de entrevistas ligaram situações de escolhas. Os dirigentes de trabalho optaram pelos nordestinos que, a um tempo, não possuíam ainda tradição de convívio urbano – e por isto seriam mais adaptáveis à nova condição trabalhista – e ao mesmo tempo manteria um preconceito derivado da escravidão que consagraria o negro a marginalidade.
Em meio a tantas suposições, notou-se que também vigorou o pressuposto da jagunçagem. Sendo que fazia parte da noção de jagunço zelar pela propriedade do coronel, de maneira mimética, tomar conta dos apartamentos e demais dependências de prédios equivaleria à modernização do mesmo fazer. Uma coisa levando a outra, restou indagar das raízes dessa manifestação. Sob a chancela que questiona o que resta da jagunçagem, orientou-se novo projeto, feito in loco, questionando as decorrências das raízes dessas manifestações.
Porteiro e zelador de prédios, destino dos nordestinos nos grandes centros
Desenvolvida a proposta, logo fomos levados à busca dos parentes dos migrantes porteiros. Foi relativamente fácil chegar até eles para entrevistas. Foi assim que aprendemos o sentido ético da jagunçagem e sua aplicação urbana no Brasil moderno. Da mesma forma, chegou-se à história do cangaço como um extremo de isolamento dos mecanismos de pertencimento de contingentes que, isolados, não teriam relações integrativas com os representantes do estado. Sem chegar até os remanescentes populacionais daquelas regiões, os padrões de dominação do estado se chocaram com o mandonismo local. Levados ao extremo, pela noção de justiça pelas próprias mãos, sob comando deles mesmos, jagunços se juntaram para resolver situações segundo seus mandamentos.
Tudo é fascinante nesta resenha, mas sem dúvida, além do entendimento do “outro”, do jagunço, cabe questionar a força do nosso preconceito, da rejeição ao negro, atitude plasmada além da força consciente de nossa compreensão imediata. Admitir isso é um passo que vai além da compreensão de um problema isolado. Há algo a mais a ser entendido em nossa democracia que não é tão flexível e miscigenada como pensamos. E como são fortes, sutis e resistentes tais valores. Nossa!…