Confesso que me preparei bastante para esta crônica, muito mais do que para outras tantas. E emocionado. Muitos sabem que em meu calendário sentimental, além de algumas sinalizações protocolares, há duas datas soberanas: Dia dos Pais e Dia dos Professores. E a cada ano na chegança do segundo domingo de agosto me pergunto o que mostrar.
Não se trata de concurso, mas vale questionar almejadas sobreposições e nelas alguma carga de novidade. Imagino a fuga dos ponteiros que querem se liberar do destino dos relógios mesmo sabendo o roteiro fatal. Foi com tal certeza que, pensando em meu pai, busquei estímulos desdobrados de retalhos tangíveis: reli anotações corridas com seu português precário; apontamentos atentos aos negócios; dois bilhetes escritos na correria da rotina trabalhosa, mas preocupado com meu estado de saúde; uns tantos cartões postais que enviei a ele e muitas, muitas anotações de contas a pagar… Enfim, vasculhei até pontuar minha saudade em três fotos que articuladas me enterneceram. Juro, fiquei paralisado. Olhei com ternura maior e tentei relacioná-las na linhagem de uma história que se renova a cada vez que considero a vida de meu pai.
E foi o que bastou: abriu-se um mundo de possibilidades reveladoras daquele homem especial, do ser valente, mas que nunca perdeu a alegria. Nunca. Papai cantava muito, contava casos como ninguém e adorava fazer surpresas. Lembro-me de um dia comum em que ele apareceu na hora do almoço com 9 convidados, jogadores de futebol do clube que ele amava. Minha mãe quase enlouquecia. Foi essa recordação específica, aliás que provocou a aproximação das três fotos, de três momentos que explicam o encanto de meu pai.
Pai de JC Sebe na época em que embarcou sozinho em Beirute
A começar pela imagem dele, menino que na altura de seus 14 anos, sozinho, embarcou de Beirute para o Brasil onde tinha um tio, o último familiar que lhe mandou a passagem. A foto sisuda da “Carteira 19”, documento de emigração, desmente outra, uma segunda, de 1937 quando se casou com minha mãe, aliás resultado de um acordo familiar; explico-me: meu avô materno, pai de 16 filhos, casava as moças por ordem de idade, e uma tia imediatamente mais criança estava comprometida com “bom partido”, condição que exigia o enlace apressado de minha mãe.
Casamento dos pais de Mestre Sebe em 1937
Meu pai, jovem muito bonito quando chegou ao Rio de Janeiro, foi morar na boêmia Lapa, logo foi “adotado” por moçoilas que defendiam a vida “cantando e bordando”. O tal Tio Habib, caixeiro viajante, tratou de solucionar o problema arranjando casamento com a moça, minha mãe. Para a boda, ele esmerou-se e com roupa emprestada, apareceu elegante para o casório mesmo tendo conhecido mamãe às vésperas do casamento. Na foto, em sua mão esquerda um perturbador par de luvas. E posou lindamente. Em termos afetivos, diga-se, segundo a melhor tradição árabe, tudo derivava de um mantra repetido por minha avó materna que viva repetindo: casa e depois gosta. Aconteceu!
Como estratégia, era comum aos libaneses cristãos distribuir filhos por cidades próximas. E assim os irmãos de minha mãe se espalharam pelo Vale do Paraíba Paulista. Havia um substrato econômico por traz dessa estratégia: abrir lojas que seriam abastecidas por compras centralizadas nos negócios do patriarca. Foi desse jeito que meu pai se tornou comerciante em Taubaté, SP. E bom comerciante, pois logo da venda de tecidos e armarinhos e para negócios com hotéis.
Pai e filho no meio da torcida do Esporte Clube Taubaté
Por lógico outras fotos poderiam mediar esta epopeia, mas a síntese de tudo se transparece em um flagrante dele, perfeitamente integrado a um grupo de torcedores na arquibancada do Esporte Clube Taubaté. E garboso, em seu terno escuro, com inefável sorriso, como se fosse o centro da foto, ele comia pipoca. Diria que para qualquer observador a foto pode parecer corriqueira, mas para mim… E não há como deixar de me emocionar vendo aquele ser tão cheio de histórias, entregando-se lindamente à um momento prosaico. Olhei mil vezes para aquela imagem. Viajei na história e rolou uma lágrima, duas, três… Saudade de meu pai.
Saudade doída, mas linda. Papai comendo pipoca num estádio de futebol. Ô vida…