Era para ser uma visita rápida, um breve aceno de lembrança, coisa para matar a saudade. Eu ainda cansado de longa viagem e ela em expediente de trabalho. Mas era caminho e a vontade se fez alternativa. Fui. A conversa depois do abraço correu pelos últimos acontecimentos de nossas vidas. A troca foi veloz e, num repente, passamos do plano nacional às nossas vidas.
Entre realizada e eufórica, ela me reportava às novidades de um curso produzido e executado por mulheres negras na USP. Empunhando o programa declinou as aulas já dadas e se fazia arauta de vindouras. É preciso dizer que conheço Teresa Telles há mais de dez anos. Bonita demais, no começo de nossa amizade, usava roupas discretas condizentes com alguém que ainda arrastava experiências de assessora de sucesso no mundo dos negócios. Foi a paixão incontrolada pelas Humanidades que a fez largar carreira em curso, e trocar segurança econômica pela decifração dos códigos da História. Lembro-me do cabelo bem-posto, impecável nos alisamentos e arranjos impecáveis. Outros os tempos. Todas as mudanças…
Os anos correram e ela se tornou guardiã de instituições da USP, funcionando acima de secretária ou de qualquer outro posto administrativo. Sobra-lhe competência. Creio que ela jamais saberá da emoção de acompanhá-la nos programas de pós-graduação e vê-la, muito mais do que funcionária fundamental, mestre com dissertação defendida. É preciso dizer que seu cabelo naturalmente livre dava a ela, ainda mais, uma qualidade de beleza exuberante e tudo se completava com os extravagantes turbantes coloridos e brincos exagerados. A tradução da formosura afro se fazia brasileira nela. E no embalo de apoios mútuos houve muita troca de presentes. Com emoção, lembro-me de ter lhe ofertado “Poncia Vicêncio” o livro de Conceição Evaristo.
Conceição Evaristo, uma escritora popular
Devorado o texto, lhe passei meu exemplar autografado de “Becos da memória”. Pronto, estava plantada uma árvore de frutos multiplicados. Confesso que havia um doce veneno na minha proposta. Secretamente percebia nela o efeito progressivo do desenho de novo protagonismo negro na cultura brasileira. E Conceição Evaristo é a musa irradiante da intensidade literária que se renova negra com a cara do Brasil do futuro.
O inusitado do nosso reencontro naquele exato dia, porém, me assustou. Não mais que de repente, estávamos falando de uma destas detratoras de Monteiro Lobato, de pessoa que cumpre a zanga de atribuir a ele uma síntese da educação antirracista de largura nacional. Confesso que ando cansado disto, em particular pelo fechamento de diálogos e pontificações fracionadas.
Os recortes convenientes do grande escritor de Taubaté têm sido repetidos ad nauseam, como mantra capaz de ferir um pilar fundamental da chamada literatura infantil brasileira. Esta estratégia importada – começou nos Estados Unidos com a detratação de Mark Twain em “Tom Sawyer” já nos idos de 1965 – teve impacto modelar no Brasil. A rigor, convém mencionar um esforço pouco valorizado por estudiosos que não consideram que para a opinião pública, o primeiro argumento a favor do debate sobre o negro nas artes visuais foi a novela “A cabana de pai Tomás”, feita pela Globo em 1968. Tudo interessa nesse episódio, pois a obra escrita por uma mulher negra estadunidense, Harriet Stowe em 1852, chamava atenção por vários aspectos, mas principalmente por ser escrita por negra e cobrir um tema pouco ventilado entre nós: a escravidão. Como novela, no Brasil, a “Cabana” recebeu ampla cobertura, em particular porque o polêmico dramaturgo Plínio Marcos fazia pesadas críticas ao uso de ator branco (Sérgio Cardoso) no papel principal. Depois dos artigos do polêmico autor de “Navalha na carne” estava aberto o debate sobre os negros e arte no Brasil.
Na linha dos programas televisivos, por outro lado, desde a inauguração da televisão no Brasil, Lobato em sido usado em adaptações variadas, fato que o notabiliza como um dos cinco autores brasileiros mais populares de todos os tempos. Por isto, aliás, serve de pretexto para críticos que o elegeram como motivo de negação (por que será que pouparam José de Alencar, Aloisio Azevedo ou Jorge Amado?). Resta dizer, em primeiro lugar que é lamentável, frente a uma obra enorme como a de Lobato, reduzir o conjunto e abreviá-lo a adjetivos simples. Lobato talvez seja a maior vítima deste tipo de juízo, seja de um lado ou outro. Ao mesmo tempo em que é mostrado como comunista, socialista, anarquista, monarquista, é tido também como racista. Haja limitações! E recortes de passagens sempre descontextualizadas e reforçadas por outras citações extraídas de cartas ou artigos sempre circunstanciais, jamais em conjunto.
Jamais, pois certamente isto demandaria maiores cuidados. Permitam-me lembrar que somos frutos de nossos tempos e que a recepção de qualquer produção artística depende do consumo e do mercado, não apenas da emissão. Falamos de uma época em que os temas eugênicos estavam na pauta e é erro crasso julgar pela visão de hoje o que fomos um dia. E Lobato modulou muito isso. Aliás, na senda revisionista, seria recomendável mudar a Bíblia no elogio ao sal, transformar sambas memoráveis com novas imagens de mulatas, encrespar cabelos de fotos de escravos…
A favor de Lobato, ainda no seu tempo, convém ter iluminadas as citações simpáticas aos negros em contos como “Negrinha” e “Jardineiro Timóteo”, “Bocatorta”, entre outros. Além do mais, cabe também inscrever a releitura de Lobato na ordem do “politicamente correto”, pois de seus personagens, antes e sem reclamações, foram tirados o cachimbo, a menina Lúcia perdeu sua “cor de jambo”, e o saci virou, de violento, um bonequinho de efeito pedagógico mulatinho e quase branco; tudo diverso do que Lobato propôs. Mas estas metamorfoses todas ficam pequenas frente o equívoco de certas linhas do movimento negro (retomado no Brasil a partir de 1978) que insiste em trocar a consistência de novas criações e insistir em reinventar começos já trilhados sem sucesso.
É exatamente aí que entra o pulso de Conceição Evaristo. Suas obras criam, são novidades críticas e lindas, hábeis a mostrar possibilidades na produção fértil. Isto é muito mais relevante do que mal requentar aspectos, quase sempre mostrados sem argumentos.