Escrever é algo que nos aproxima do divino. Cria-se quando o branco da página ou da tela vai se fazendo em linhas, somando palavras, conectando frases. E nesse céu, cada qual tem seu universo de invencionices. Por irônico que pareça, cumpre-se nessa senda o designo da imagem e semelhança do criador. O bom texto tem que ser a cara do autor. O mundo assim vai ganhando contornos explicativos e a mágica da escrita se amplia na aceitação dos leitores. A complexidade dessas condições na modernidade ganha atalhos ainda mais enigmáticos quando se leva em conta os avanços tecnológicos, tão importantes na produção dos textos como nos mecanismos que os divulgam. Seria vão tentar explicações mais profundas nos parcos espaços de uma crônica, mas…
Mas há algo tangível e que merece ser dito. Parto do princípio de que todo escrito é sempre autobiográfico. Por mais distantes ou longínquos que sejam os temas, as escolhas e abordagens, a forma e as palavras traduzem muito de nós. Sobremaneira, a crônica é um gênero revelador de nossos recônditos, perdendo apenas para as autobiografias. Derivativo do termo grego “kronos”, tempo, o termo guarda segredos da tradução de realidades que clamam por sínteses, registros de fatos corriqueiros, banais mesmo, mas gravados com ansiada beleza. Nossa literatura é pródiga em número de bons cronistas, e lista-los é como rezar uma ladainha que inclui Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Fernando Sabino entre tantos senhores respeitáveis.
Há algo mais a ser dito no retraço da relevância das crônicas: ela vicia. Num voo muito rápido pela minha produção devo ter registro de mais de 500 peças. Por lógico, não o faço por obrigação ou dever. Não. Minhas linhas semanais se comportam como dimensão do que sou e assim vou “escrevendo a vida”. E procuro sempre oferecer o melhor. Por vezes, repetem-se situações esdrúxulas, dificuldades tecidas ao acaso e convites constantes aos impedimentos. De uma ou de outra forma tenho superado tais entraves. Na já longa sequência de circunstâncias, hoje se dá uma inédita: escrever no dia de meu aniversário. E que aniversário: 75 anos! Já comentei em outras oportunidades a relevância histórica do dia 15 de março – data considerada por Shakespeare como “o dia mais triste da história” pelo assassinato, em 44 a.C., de Júlio César pelo próprio filho adotado, Marco Brutus. O episódio conhecido como “idos de março” não me foge quando pontuo questionamento da minha existência em face da alegria de viver.
Escultura de Júlio César
Por certo, cumpri tarefas intelectuais em outros dias 15 de março, mas não me lembro de escrever uma crônica sintonizada com a celebração. E fazer 75 anos equivale a uma saudação à minha própria vida. Não sei ainda quanto tempo me resta, mas posso dizer do alto da experiência que me sinto bem comigo mesmo, em coerência com o “parabéns pra você”. O que vier é lucro, diria, mas também garanto que o futuro há de me levar a ter mais compaixão comigo mesmo. Quero reinventar a delicadeza das relações que vejo tão deterioradas. Preciso depurar a visão do lado clemente dos gestos pessoais e alheios, pois, sinceramente, cansei de ser cáustico. Sartre dizia “dos meus dias, quero só os excessos” e os que pretendo são de finezas. E tenho que exercitar o graças aos deuses pela vida boa que tive. Nunca passei fome ou frio, tive oportunidades de trabalhos e amigos aliados em todas as horas. Se houvesse que distinguir uma generosidade em minha trajetória, renderia tributo aos meus pais. Imigrantes miseráveis, chegaram sem nada e, em obediência ao arco desenhado pela história do Brasil, em uma geração conseguiram se posicionar.
Aprendo muito respeitando o desenho da vida familiar. É por isso que rendo tributos ao fato de aceitar as diferenças, não me portar de maneira preconceituosa, admitir liberalidades progressistas e cultivar a coerência. Há algo que venho apurando com muito zelo: não falar mal dos outros. Mesmo reconhecendo imperfeições, acho que se não puder bem dizer, é melhor ficar calado. E não vejam nisso retraços de velhice ou conformidade ingênua. Não quero perder a crítica, mas não faço mais questão de ganhar discussões. Uma das palavras que quero riscar de meus dias futuros é tolerância. A perversidade do tolerar coloca-nos no epicentro de um mundo que tem que ser aceito por negociações de valores. O verbo do futuro dos meus dias é aceitar. Aceitar com filtros e com os rendimentos de juízos que me fazem mais e melhor observador do mundo. Não preciso mais explicar. Quero compreender…
A canção mecanicamente apropriada para o dia de hoje sugere “parabéns”. Eu os aceito vindo de mim, mas tenho restrições em vista do complemento “muitos anos de vida”. Quero sim continuar vivendo neste plano, mas só o suficiente e com o melhor que a vida pode me dar: paz.