À medida que a crise avança, conceitos democráticos vão sendo deformados, e palavras, distorcidas pelo governo federal, como na novilíngua de ‘1984’, obra de George Orwell
À medida que a crise avança, vamos assistindo à involução dos hábitos e dos costumes republicanos, tendo o presidente Jair Bolsonaro como protagonista e ministros como coadjuvantes de uma tragédia na qual os conceitos democráticos vão sendo deformados, e palavras, distorcidas, a exemplo da “novilíngua” criada pelo escritor inglês George Orwell na novela “1984”, na qual o autoritarismo muda o sentido das palavras para melhor acomodá-las a seus interesses.
Nesse mundo distópico, o Ministério da Verdade cuida de criar a realidade, controlar a verdade oficial. Palavras ganham sentido inverso do original, ou simplesmente desaparecem por desnecessidade, como “liberdade”. Um lema resume o sentido da “novilíngua” orwelliana: “Guerra é paz, escravidão é liberdade, ignorância é força”. Hoje, no Brasil, quando Bolsonaro está muito irritado com sua segurança pessoal, ele promove o chefe do setor.
Orwell escreveu “1984” pensando nos regimes comunistas, mas o autoritarismo de direita tem os mesmos vícios de distorcer os fatos a seu favor. A mais recente demonstração de como é possível torcer o sentido das palavras para tentar mudar a realidade é a declaração do presidente Jair Bolsonaro de que nunca proferiu o nome da “Polícia Federal” na já famosa reunião ministerial em que o ex-ministro Sergio Moro diz ter sido ameaçado de demissão pelo chefe de governo.
Depois de idas e vindas, com versões que contradiziam o presidente, até mesmo do ministro Luiz Eduardo Ramos, a transcrição oficial do áudio feita pela Advocacia-Geral da União (AGU) revela que, sim, o presidente se referiu à Polícia Federal. Confrontado com a realidade, o que faz Bolsonaro? Explica na “novilíngua”: “Está a palavra PF. Duas letras. (…) Tem a ver com Polícia Federal, mas é a reclamação PF no tocante ao serviço de inteligência”.
A disputa entre Nebraska e Careca contada por Machado de Assis
Faz lembrar o conto de Machado de Assis “A sereníssima República”, no qual relata uma disputa entre os candidatos Nebraska e Caneca, em que o vencedor seria sorteado em um saco contendo duas bolas com os nomes dos concorrentes. A bola sorteada tinha o nome de Nebraska, mas sem a letra final “a”. Caneca, o derrotado, impugnou o resultado e pediu que um filólogo analisasse a situação.
O professor fez malabarismos de pseudofilologia até que transformou o nome “Nebraska” em “Caneca”, revelando o verdadeiro vencedor do sorteio. E ainda esnobou os ouvintes: “(…) é a coisa mais demonstrável do mundo. Mas não demonstrarei isso. É óbvio. Há consequências lógicas e sintáticas, dedutivas e indutivas”.
Vice-presidente general Hamilton Morão, criticou a imprensa
Também o ministro Braga Netto, chefe do Gabinete Civil, utilizou-se da “novilíngua” para explicar o inexplicável: “O presidente respeita a ciência, mas ele tem visto radicalismos”. Esse seria o caso de um “duplipensar”, palavra que Orwell criou em “1984” para definir a possibilidade de um indivíduo ter pensamentos contraditórios entre si.
O ministro da Economia Paulo Guedes, que aderiu ao histrionismo bolsonariano, explicou em “novilíngua” o direito que ele acha que o presidente Bolsonaro tem de se infectar: “É um direito dele ser infectado, porque ele não está infectando ninguém”.
O vice-presidente, general Hamilton Mourão, em recente artigo, criticou a imprensa: “Opiniões distintas, contrárias e favoráveis ao governo, tanto sobre o isolamento como a retomada da economia, enfim, sobre o enfrentamento da crise, devem ter o mesmo espaço nos principais veículos de comunicação”. Outros ministros, como Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos, vêm batendo na mesma tecla, pedindo notícias boas para contrabalançar as más, e querendo que as 15 mil mortes de brasileiros sejam noticiadas como meros números proporcionais ao tamanho de habitantes dos países, como se transformar vidas humanas em meras estatísticas reduzisse o estrago. Mesmo assim, São Paulo tem mais mortes que a China; e Recife, mais mortes que a Argentina.
Na verdade, repetem a famosa situação do ditador Costa e Silva que, ao queixar-se de um dono de jornal por críticas demasiadas, ouviu a explicação: “São críticas construtivas”. E respondeu: “Eu gosto mesmo é de elogios construtivos”. Não conhecem a máxima: notícia é tudo aquilo que o governo não quer ver publicado.